Determinismo causal e livre arbítrio

Todo mundo sabe que o mundo segue regras: tudo que acontece decorre do que aconteceu antes e tudo que acontecerá decorrerá do que acontece agora.

O universo é regido por leis naturais que não permitem exceção. Tudo que acontece, acontece por força dessas leis.

Isso inclui não apenas coisas simples, mas coisas bem complexas, como nosso próprio cérebro. Nosso cérebro é parte do universo e está sob o mandamento das mesmas leis naturais de sempre.

Ou seja, você não controla seus pensamentos. Tudo que “você” pensa, na verdade não é você que pensa. “Seu” pensamento foi gerado pelo seu cérebro e adentrou sua consciência. Você não escolheu pensá-lo.

Não sou eu quem digo isso. É Nietzsche, no item #16 de Além do bem e do mal: “é o fato que um pensamento ocorre apenas quando quer e não  quando ‘eu’ quero, de modo que é falsear os fatos dizer que o sujeito ‘eu’ é determinante na conjugação do verbo ‘pensar’.

Como diria Jorge Aragão, nada, nada é seu, nem seu pensamento.

De toda forma, o determinismo pressupõe que tudo que acontece tinha que acontecer, por força do que aconteceu antes e das leis inquebráveis do cosmos. E a noção de escolha, de arbítrio, pressupõe a possibilidade de caminhos alternativos.

Portanto, sendo o mundo determinista, é impossível falarmos em livre arbítrio — ou em qualquer arbítrio, esse “livre” é uma redundância.

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O determinismo, claro, está longe de ser universalmente aceito. A doutrina da qual falamos aqui, que é um determinismo físico, dependente do determinismo das leis naturais, é posta em dúvida, por exemplo, pela mecânica quântica. Ainda que isso seja um tema controverso entre físicos e filósofos, a mecânica quântica (ou pelo menos algumas de suas teorias) expressa leis naturais em termos de resultados prováveis, e não de resultados certos, como faz a mecânica clássica. Isso teoricamente traz a possibilidade de um mundo que, mesmo governado pelas leis naturais, permita futuros alternativos. Ainda assim, o indeterminismo da mecânica quântica é questionável. Trata-se realmente de indeterminismo, ou de um limite às nossas capacidades de mensurar o mundo subatômico?

O senso comum pensa na mecânica quântica como aquela teoria em que não se pode definir a posição e a direção de uma partícula, mas apenas calcular probabilidades. Todos se lembram da caixa de Schrödinger e do gato que está lá dentro, ao mesmo tempo vivo e morto. A mecânica quântica é considerada uma teoria de probabilidades, não de certezas. E isso está correto até certo ponto.

Até certo ponto.

Tudo começou em 1927, quando Heisenberg provou que era impossível determinar a posição e o momentum de uma partícula ao mesmo tempo — ou você sabia sua posição, ou sabia seu momentum, mas nunca os dois ao mesmo tempo. Esse é o Princípio da Incerteza de Heisenberg.

Os conhecimentos que se seguiram durante o século XX fizeram muita gente achar que o princípio da incerteza havia provado de vez que a física quântica não era determinista. Mas isso não era consenso entre os estudiosos: físicos respeitáveis como Lev Vaidman ainda defendem que a ciência quântica pode e deve ser estudada à luz do determinismo.

Então nós não temos certeza mesmo se o mundo é absolutamente determinista, e talvez essa seja uma pergunta que nunca possamos responder com certeza. 

Isso quer dizer que nós, seres humanos, então temos escolha? A possibilidade de futuros alternativos garante que sejamos agentes capazes de escolher entre esses futuros possíveis? A incerteza quântica garante que sejamos os verdadeiros agentes de nossas vidas?

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A resposta é não.

A complexidade e a natureza particular da consciência humana causam tanta perplexidade que não nos surpreende que busquemos uma causa metafísica para ela. Afinal, como simples reações químicas poderiam criar a sensação de ser alguém que tem propósito, que ama e que questiona seu próprio destino no universo?

A mesma perplexidade também por séculos acometeu os humanos que buscavam uma força particular que explicasse a vida.  Haveria de haver algo que explicasse a diferença gritante entre uma rocha e um sapo. Uma espécie de força vital. Talvez a alma ou o espírito.

A descoberta das moléculas replicadoras, da estrutura do DNA, do código genético e toda a produção científica relacionada trouxeram respostas científicas à questão da vida. Trata-se de reações químicas, extremamente complexas, sim, mas ainda meras reações químicas, sujeitas às mesmas leis naturais que regem todo o resto do universo.

Da mesma forma, nossa consciência, nossos sentimentos mais profundos e nossos pensamentos mais elaborados são produtos de reações químicas naturais do nosso cérebro. Não é necessário que haja alguma entidade especial para que essas maravilhas da natureza sejam produzidas. A intricada rede de neurônios e glia dentro da nossa cabeça é suficiente para criar a admirável consciência humana.

Essa visão de que nossa mente depende simplesmente da química cerebral parece (e de alguma maneira é) biologicista. Mas dizer que a consciência é produto de reações químicas não quer dizer que fatores sociais ou psicológicos não a influenciem. Traumas psicológicos, psicoterapia, educação formal etc. alteram, sim, nossa psiquê, através de mudanças em última instância biológicas. Apesar de nossa dificuldade em estudar cientificamente o cérebro, não há razão para crer que tudo isso não possa um dia ser explicado em termos neurofisiológicos.

Dada a complexidade da consciência humana, é normal pensar que nossa cabeça guarda nossa alma ou qualquer outra entidade metafísica. A verdade, porém, é que o cérebro é um órgão que simplesmente recebe, processa e envia sinais elétricos.

A função básica de um sistema nervoso é essa: receber sinais do mundo externo (através dos sentidos), processar esses dados (entendê-los e chegar às melhores alternativas para reagir a eles), e enviar respostas (pelos órgãos motores).

As “respostas” que o cérebro produz não são simplesmente inventadas por ele. Elas dependem basicamente de três coisas: 1. da informação que chega; 2. do design do cérebro; e 3. das leis naturais.

A “informação que chega” são os dados captados pelos órgãos sensoriais: tudo que vemos, ouvimos, degustamos, sentimos na pele e cheiramos.

O “design do cérebro” compreende sua anatomia e sua bioquímica: a quantidade e a localização das sinapses, a quantidade de receptores e neurotransmissores de cada via, as conexões entre diferentes partes do órgão etc. Boa parte desse “design” é fruto do genótipo de cada indivíduo, mas ele também é moldado pela “informação que chega” (p. ex., quando ouvimos e vemos algo, aprendemos, e o aprendizado compreende mudanças estruturais e bioquímicas no cérebro) e mesmo por substâncias que podemos adicionar ao nosso sistema nervoso central (drogas psicotrópicas). O “design” do cérebro determina quais respostas serão geradas para as informações sensoriais que chegam a ele.

Por fim, as “leis naturais” são as regras segundo as quais acontecem as reações químicas e os fenômenos físicos do cérebro.

Ou seja, tudo que o cérebro “produz”, todos os sentimentos, pensamentos e comportamentos são produto do processamento da informação sensorial que chega até ele. Esse processamento depende do “design” do cérebro, definido em conjunto pela genética e por fatores ambientais. Tudo isso segue leis naturais eternas.

Não há espaço para que o agente racional adicione nada nessa equação. Nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos são definidos por eventos fora de nosso controle consciente.

O mundo pode até não ser determinista a nível quântico (acho essa ideia bem louca). Mas isso não quer dizer que temos escolhas. Somos apenas um amontoado de moléculas seguindo o destino probabilístico quântico do universo.

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A não veracidade do determinismo de forma alguma automaticamente valida o livre arbítrio. Principalmente se pensarmos em termos quânticos. Mesmo que as leis do universo permitam futuros alternativos no subuniverso quântico, o que nos faria supor que a vontade humana pode controlar essas porções minúsculas de matéria e energia?

Mesmo se as partículas subatômicas tiverem algum grau de “liberdade”, ainda assim é difícil argumentar que nós, seres humanos, tenhamos algum controle sobre essas partículas, de forma que tenhamos algum controle sobre seu comportamento em nosso cérebro, de forma que poderíamos dizer que de alguma maneira temos o mínimo de influência sobre nossos cérebros.

Como disse Schopenhauer, nós podemos fazer o que queremos, mas não podemos querer o que queremos. De fato, temos a ilusão de escolha: ir à faculdade ou matar aula, sair com os amigos ou dormir cedo etc. Se eu quiser sair, eu saio, se eu quiser dormir, eu durmo; se Marcelo D2 quiser beber, ele bebe, se quiser fumar, fuma. Nós realmente fazemos o que queremos. Porém, nós não controlamos o que queremos.

 Nada, nada é meu. Nem o pensamento.

Somos simplesmente veículos para que os pensamentos se gerem segundo as leis naturais.

O livre arbítrio não existe, nem em um mundo não determinista.

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