Dois documentários imperdíveis para assistir

‘Elis & Tom, só tinha de ser você’, e ‘Tudo o que respira’ são filmes lindos sobre memória, paixão e sobrevivência.

“Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro mas não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando”. Esse poema escrito por Ferreira Gullar serve como ponto de encontro entre dois documentários muito bons: ‘Elis & Tom, só tinha de ser você’, já disponível no Globoplay e em cartaz em alguns cinemas do Brasil, e ‘Tudo o que respira’, na HBO MAX. 

Dirigido por Jom Tob Azulay e Roberto de Oliveira, o filme sobre o encontro de Elis Regina e Tom Jobim para gravarem um dos álbuns mais emblemáticos da música brasileira e mundial, mostra um bastidor difícil. A ideia surgiu logo depois de Elis fazer um show para as comemorações dos jogos militares, em plena ditadura militar brasileira. Queimou seu filme com o público. Do outro lado, Tom Jobim andava amargurado. A Bossa Nova perdia força ante ao levante tropicalista, e suas composições não eram tocadas com frequência, segundo ele mesmo. 

A ideia de convidá-lo para uma parceria com Elis era boa. Limpava um pouco a barra dela do episódio com os militares e impunha um certo desafio ao compositor. Pelo menos é isso que o filme realça, já que eles não se davam.

Mas o documentário desmonta a sinopse apontada acima com muita sensibilidade. Toda essa possível rusga, esse embate que se avizinhava, na verdade, era um certo medo do choque criativo, da combustão instantânea de ter Elis e Tom juntos, na mesma sala, criando algo. 

Donos de personalidades fortes, fica evidente que ambos estavam inseguros e, ao mesmo tempo, ansiosos para desatarem as formalidades, os medos e as desconfianças e fazerem música juntos! César Camargo Mariano, ex de Elis e um dos grandes pianistas do mundo, arranjou o álbum. Diante de um jovem de 27 anos, demorou até que Tom se desarmasse. Era a primeira vez na vida que alguém fazia esse trabalho. 

A direção do filme é muito elegante. Até a chegada da gravação, ainda que Tom e Elis dividissem a mesma cena, o recorte da edição os mantém separados. À medida que “o amor nasce”, como destaca outra lenda brasileira, o baterista Paulo Braga, a aproximação se torna irreversível; as defesas de ambos caem, Elis acha no minimalismo de Tom Jobim uma dimensão do próprio talento que ela mesma não conhecia e Tom acha na selvageria da cantora outro tipo de energia criativa. Nessa feitura do álbum, Elis e Tom vão descobrindo ser um pássaro só: ele bate uma asa, e ela a outra. 

Indicado ao Oscar 2023 na categoria, “Tudo o que respira” também fala sobre uma paixão. Nadeem Shehzad, Mohammad Saud, Salik Rehman, três irmãos que moram em Nova Delhi, na Índia, dedicam suas vidas a resgatarem e cuidarem do milhafre preto, uma ave de rapina essencial para o ecossistema local.

O diretor, Shaunak Sen, dispensa as entrevistas. Seu registro é poético, lentíssimo e cuidadoso. Por baixo de tanta beleza e empatia, a melodia de Sen é outra: enquanto milhares de milhafres pretos caem do céu adoentados, o mundo sucumbi ante as mudanças climáticas. 

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Se a trilha do documentário é uma sinfonia de alerta, a cidade é filmada por ele como uma selva. Constantemente, o diretor capta os animais vivendo entre os humanos, mostrando um certo tipo de invasão e degradação. Mostra os esgotos à céu aberto e os animais e homens andando pela água barrenta. Seu registro poderia ser sensacionalista. Só que o feito é outro, através de imagens lindas, principalmente daquelas onde o voo do milhafre preto é visto. Em dado momento, alguém diz que a maioria dos pássaros usam toda sua energia para voar. O milhafre preto é diferente. É um momento especial de “Tudo o que respira”, de conexão entre os irmãos e o mundo onde eles vivem, um tipo frequência que só eles estão ouvindo. Dá pra dizer que o voo do milhafre preto lembra a voz de uma mulher. Mas não uma mulher falando: lembra Elis Regina cantando “Retrato em Preto e Branco”. 

Mesmo se vistos em seguida, como eu fiz, os dois documentários são melodias diferentes. Mas em alguma medida, se aproximam e falam sobre o mesmo mundo que degrada, esquece e mata a beleza das coisas; sobre preservar mais do que consumir, e reverenciar aquilo que é necessário para viver. Para entender como o céu pode ser bonito, é preciso resgatar o milhafre preto, Elis, Tom, Johnny Alf, João Donato, Alaíde Costa, e tudo o que respira.

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