Os “felizcondríacos”, a felicidade como produto (e porque odeio coaches)

“A felicidade já não é a consequência do consumo de um produto, ela é o próprio produto; a felicidade deixa de ser uma emoção para ser um modelo de subjetividade especifico e normativo alimentando(-se de) uma indústria construída para vender um ideal utópico e infindável.”

Reflexões sobre o livro Happycracia, de Eva Illouz e Edgar Cabanas.

Àqueles/as que tive o prazer de conhecer em alguma aula ou palestra poderão se lembrar sobre o meu desprezo último ao significado adquirido pelo termo “coach” e similares. Os discursos vazios, a solução mágica e genérica para qualquer situação, as fórmulas prontas que “só dependem de você”….. afff! #preguiça.

Válido mencionar que trato aqui da simplificação do termo e, sobretudo, da construção retórica feita por pessoas que se autodenominam especialistas em temas sobre os quais possuem apenas mínimo conhecimento e/ou cujo efeito Dunning-Kruger as impede de ter autoconsciência sobre a própria ignorância.

Nem falar da deturpação de conceitos e pensamentos científicos validados para adequarem-se a uma retórica que, apesar de vazia e totalmente infundada, traz uma construção de ideias de compreensão simples (simplória), conferindo ao indivíduo uma percepção de poder sobre todos os aspectos da vida, em que mesmo os fora de controle seriam superados por uma “visão positiva” ou “atitude de gratidão”, ou qualquer outro vernáculo ignóbil que tem um, e apenas um, objetivo: vender um ideal de felicidade como mercadoria, tangibilizada em produtos e serviços.

Pop art illustration of a man being forced to smile by two hands against a bright yellow background.

Nisto, a felicidade, em si, deixou de ser uma emoção individual para se transformar em “um modelo de subjetividade específico e normativo”.

As aspas vêm do livro que apresenta estas ideias, “Happycracia: Fabricando cidadãos felizes”, do doutor em psicologia Edgar Cabanas e da doutora em comunicação e estudos culturais Eva Illouz (que, inclusive, tem outro livro interessante chamado “O amor nos tempos do capitalismo“).

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Este texto tem como objetivo compartilhar algumas questões do livro Happycracia que fundamentam as visões do autor e da autora, e que acabam por refletir muitos aspectos do meu entendimento particular sobre a tal “indústria da felicidade”.


Cartoon depicting a large hand controlling people reading newspapers like puppets, illustrating media manipulation and control.

“É sem dúvida mais fácil enganar uma multidão do que um só homem”

A partir da frase atribuída a Heródoto, acrescento ao pensamento dos autores, como um prefácio estratégico, que enganar as pessoas retoricamente é, infelizmente, algo fácil e sujeito apenas à ética e consciência do enganador para com o público.

Isto é particularmente ainda mais verdadeiro quando se utiliza da segurança dada por grupos de suporte, construindo uma comunidade ao redor de um discurso que os une, não importando sua veracidade ou efeito.

A construção de uma argumentação narrativa genérica o suficiente para que qualquer pessoa possa se projetar (e à SUA situação) oferece a plasticidade suficiente para se adaptar a qualquer cenário, ignorando particularidades, faz com que seja mais fácil produzi-la e comercializá-la – o popular “estava falando comigo!”. Desta forma, todos (e cada um) de um sistema social enxerga-se como parte de algo maior enquanto, ao mesmo tempo, entender ser direcionado a si tais argumentos.

E isto não é por acaso.

Nosso cérebro é condicionado a trabalhar projeções em narrativas, como uma forma de aprender por meio do outro; assim, estamos sempre buscando fazer a carapuça servir e, consequentemente, determinadas construções argumentativas parecem ter sido feitas para nós (ou falar de nós).

Pausa para uma historinha… 
quando, convencido por minha ex-mulher, fomos fazer um mapa astral de cada um. Como estávamos em salas separadas, compartilhei todos os dados necessários com a pessoa que estava roubando meu dinheiro montando meu mapa…. todos os dados…. errados. O resultado foi um relatório minucioso sobre meus traços de personalidade e comportamento que, claro, foram validados por minha então cônjuge, alheia à minha manipulação experimental (“- Ele é assim mesmo! Olha aí, você não acreditava, né?”).

Mas, voltando com uma citação de Carl Cederström e André Spicer, apresentada no livro “The Wellness Syndrome” (A síndrome do bem-estar, em tradução livre, mencionado em Happycracia)

A única explicação razoável para o contínuo e crescente auto aperfeiçoamento é que as pessoas não param de tentar seguir novos conselhos, não importa se suas tentativas anteriores funcionaram ou não […]. Em uma sociedade de consumidores, não se espera que compremos um par de jeans e fiquemos satisfeitos. O mesmo vale para o auto aperfeiçoamento.

Não se espera que melhoremos apenas uma área de nossa vida. Somos encorajados a melhorar todos os aspectos da nossa existência de uma só vez ponto precisamos estar em nossa melhor forma, ser mais felizes, saudáveis, ricos, inteligentes, tranquilos e produtivos – tudo de uma vez, todos os dias. E há uma pressão para que mostremos saber como levar uma vida perfeita.”

Cederström & Spicer, 2015

As “fórmulas para a felicidade”

A construção da expectativa de felicidade segue uma linha similar. O uso biopolítico do discurso de felicidade faz com que a ela não seja a consequência de algo – inclusive, com a argumentação de ser potencialmente ser criada a partir do consumo – mas o próprio produto em si.

E, mais do que isso, um produto que jamais teremos por completo, uma eterna incompletude criada a partir de horizontes idealizados e que, claro, abre mais espaço para vendas de novas fórmulas, soluções mágicas e “5 passos para ser feliz…”

Com sua oratória peculiar, o prof. Clovis de Barros Filho já explorou o vazio dos discursos de autoajuda:


Em Happycracia, o autor e autora descrevem 5 formulações trazidas pelo discurso mercantilista da felicidade inalcançável:

(1) Insistir que esta venda de felicidade é baseada em evidências e que os produtos que apresentam são comprovados cientificamente.

Produtos que embutem em si uma aura quase mística de neurociência – quanto mais, melhor -, porém, claro, distorcem fundamentos e trazem usos imprecisos cuja função não é endossar a ideia (já que isto seria inalcançável), mas como argumentos de autoridade falaciosa que desejam impressionar a audiência (lembram dos “coaches quânticos?”).

Apesar disso, tais abordagens se revestem de linguagem mais coloquial e acessível para fácil compreensão: otimismo, esperança, autoafirmação, gratidão, satisfação, etc. Ou seja, deturpam a complexidade (natural) do fundamento equiparando-a (traduzindo-a) a conceitos amplos, flexíveis, genéricos e de fácil e rápida absorção.

(2) Insistir que a felicidade é algo que precisa ser exercitada continuamente, como um “músculo emocional”

… e que demanda exercício contínuo tendo a indústria emocional provendo aparelhos, suplementos e personal-happy-trainers na forma de cursos, sessões de terapia, livros de autoajuda e afins.

Assim, colocam que “a felicidade […] deve gerar uma narrativa em que o eu é na verdade definido por ausência de plenitude e por insuficiência permanente”.

Os autores usam o termo “vigoréxico emocional” para descrever pessoas obcecadas com sua autoestima e crescimento pessoal e profissional que chegam ao ponto de desenvolver uma visão deturpada de que nunca estão completas.

(3) Colocar a felicidade como algo insaciável, uma meta que nunca será alcançada. Não importa quão satisfeito se esteja, sempre poderemos ser mais felizes.

A felicidade, então, não seria a ausência de mal estar, mas a constante alimentação do bem estar utópico. A pergunta “quando seremos suficientemente felizes” é respondida pela indústria da felicidade de uma forma simples: nunca!

Ela nos promete o produto, mas se alimenta de um discurso de que esta felicidade como produto só pode ser incompleta ou parcial, pois sempre haveria algo mais a fazer.

Nisto, trazem o termo que está no título deste artigo, “felizcondríacos” como ilustração dos buscadores eternos da felicidade, pessoas que, por exemplo, fazem terapia não porque estão mal com algo, mas porque querem estar melhores do que já estão, sentindo-se insatisfeitas e vazias por não serem tão felizes quanto acreditam que poderiam ser – tratando-se, como visto, de uma utopia infindável.

(4) Insistir que “felicidade não é algo que se aprende, mas algo que se ensina”.

Por mais paradoxal que esta frase pareça, ela visa vincular a necessidade constante do exercício emocional e justificar a existência do “expert em bem-estar e da felicidade” como algo comercializável. Há sempre algo a ser comprado, como uma nova receita, um novo processo, um novo método para sermos mais felizes.

E, este algo, pressupõe que a complexidade da felicidade pode ser atingida de formas simples: medite duas vezes por dia, escreva frases de gratidão, escute esta música com frequência de tantos MHz, etc

(5) Os produtos da felicidade têm o atrativo de oferecer soluções simples a problemas complexos.

Produtos de felicidade geram ilusão de que é fácil mudar sua condição como um todo, que é uma questão de atitude e força de vontade, ignorando questões estruturais que independem de esforços individuais.

Por exemplo, um indivíduo sujeito a situações degradantes de trabalho, mas que depende deste para alimentar sua família, não tem o poder de “usar as outras 8 horas do dia para vender bombom em barzinhos” (como pregam alguns/mas). A potência vital e o próprio equilíbrio mental e emocional como matérias-primas da produtividade são exauridas no cotidiano, reforçando uma (pretensa) culpabilização do indivíduo pela própria condição. A meritocracia só existe quando as condições de partida são as mesmas, algo que, sabidamente, não é realidade.


Um dos autores do livro – o prof. Edgar Cabanas – passou por estes cinco pontos no TEDxMadrid, gravado em 2019:

Em uma frase atribuída ao escritor Baltazar Gracian: “Todos os mortais estão em busca da felicidade, um sinal de que nenhum deles é feliz”.


HAPPINESS NOW

– I want it all, I want it all, I want it all. And I want it now! 🎶

Colocar que a felicidade seria alcançada (unicamente) por vontades do nosso interior é uma ideia sedutora, pois dá a sensação de controle e empoderamento.

Mas, o que pode soar inofensivo, na realidade traz drásticas consequências para a saúde mental. Crer nestes pontos acima pode resultar em frustração e um sentido de culpabilidade já que, como dito, atribui ao indivíduo a total responsabilidade por sua condição e a convicção de que esta pode ser mudada sem que se alterem circunstâncias estruturais que as geram.

No curto prazo, parece simples ler um livro de autoajuda ou contratar um coach para lidar com problemas; mas, no médio e longo prazos, os problemas não apenas seguirão existindo – pois sua origem e existência se explicam melhor por questões de precariedade, competitividade ou sobrecarga de trabalho -, como ainda trará o peso da culpa ao indivíduo.

E por que tanta gente ainda cai nesse discurso falacioso?

A busca por soluções simples e o desespero eclipsam a racionalidade; a sensação de impotência frente a tantas ameaças, ao futuro, ao desconhecido, ainda mais reforçada pelo discurso hegemônico de que “é cada um por si”, simplifica também a visão de mundo e rompe com a escuta crítica.

Não por acaso, vemos similar controle aplicado a sistemas sociais que buscam o controle mental de seus membros, como seitas, extremismos religiosos e político-ideológicos. Se é falado algo que vai contra o sistema de crenças estabelecidas pelo grupo, “só pode ser” porque quem o fala quer o mal da pessoa ou grupo, logo, deve ser extirpada.

Isto serve para um importante alerta: o livro não questiona a felicidade em si ou a importância de buscá-la, mas, sim, gera reflexões sobre a tirania da venda da felicidade por pessoas e empresas que exploram as (falseadas) receitas acima. Ele nos convide a sairmos desta bolha ilusória sobre fórmulas simples e instantâneas de felicidade e de uma corrida sem fim atrás de uma interpretação equivocada de que nunca temos o suficiente (também válida para a ode à competitividade pelo dinheiro).

A publicação questiona o êxito obtido por esta indústria que normalizou a obsessão pela felicidade, menos porque somos ou não felizes, mas para que estejamos sempre preocupados se somos ou não felizes; que estejamos preocupados em procurar esta (eternamente inalcançável) felicidade e, mais ainda, que alguém tem as fórmulas “científicas” para encontrá-la.

Como coloca o próprio Edgar Cabanas em sua apresentação, esta conscientização não é um ataque à felicidade, uma exaltação da tristeza, mas uma provocação para a abertura de olhos sobre mecanismos manipuladores da felicidade como produto, que não apenas não entrega o que se propõe, como também pode trazer consequências desastrosas, atribuindo ao indivíduo a culpa por achar que não possui felicidade suficiente.

E como eliminar (ou reduzir) tal discurso enganoso?

Na crítica contínua com fundamentos, até que se chegue ao ponto em que a absurdez do sistema de crenças charlatão seja (merecidamente) ridicularizado até mesmo por aqueles que um dia cogitaram sua relevância – alguém ainda leva a sério “coach quântico”?.

Na não equiparação de achismos e ideias absurdas com fatos cientificamente (mesmo) comprovados – um debate entre um/a astrofísico/a e um/a terraplanista não ajuda a combater o terraplanismo, apenas serve para que mentes incautas achem que há uma equivalência de validade, logo, haveria 50/50 de “chance” de um ou outro (não importando refutações racionalizadas do debate).


Blackboard illustration of historical figures discussing concepts of happiness including Ataraxia, Nirvana, Illusion, Apatheia, Awareness of Unhappiness, and This Moment.

Mas, afinal, como saber se é feliz?

Citando o trecho de um artigo do prof. da Univ. de Brasília e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Isaac Roitman (O que é ser feliz):

Segundo Aristóteles, a felicidade seria o equilíbrio e harmonia, e a prática do bem.

Para Epicuro, a felicidade ocorre através da satisfação dos desejos.

Para Pirro de Élia, a felicidade acontecia através da tranquilidade.

Para o filósofo indiano Mahavira, a não violência era um importante aliado para atingir a felicidade plena.

Para o filósofo chinês Lao Tsé, a felicidade poderia ser atingida tendo como modelo a natureza.

Já Confúcio acreditava na felicidade devido a harmonia entre as pessoas.

No budismo, a felicidade ocorre através da liberação do sofrimento e pela superação do desejo, através do treinamento mental.

Para Immanuel Kant, a felicidade é a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade.

Para Friedrich Nietzsche a felicidade é frágil e volátil. E complementava, a melhor maneira de começar o dia é, ao acordar, imaginar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa.

Segundo Albert Einstein, uma vida calma e modesta traz mais felicidade do que a busca do sucesso combinada com uma constante inquietação.

Por outro lado, Hannah Arendt introduziu o conceito de felicidade pública com a participação pública nas questões políticas, da possibilidade de reunião, da alegria do discurso, da possibilidade de persuadir e ser persuadido, a liberdade pública de agir em conjunto.

O psiquiatra Sigmund Freud defendia que todo indivíduo é movido pela busca da felicidade, mas essa busca seria uma coisa utópica, uma vez que para ela existir, não poderia depender do mundo real, onde a pessoa pode ter experiências como o fracasso, portanto, o máximo que o ser humano poderia conseguir, seria uma felicidade parcial.”

Roitman, 2022

Para mim, é minha cachorra pedindo carinho:

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