Operação França e a obra de William Friedkin

Diretor genial, Friedkin ainda dirigiu O Exorcista e Possuídos.

“Operação França” (The French Connection, 1971) começa com o detetive Jimmy ‘Popeye’ Doyle (Gene Hackman) vestido de Papai Noel, perseguindo um suspeito. A cena não é cômica. Sem música, com a câmera na mão, a disparada de Doyle é truculenta, grosseira e sem um pingo de respeito. Ele derruba o homem no chão, enche o sujeito de porrada e só depois faz as perguntas. 

Doyle é um detetive eficiente, que fareja o problema. Também não é corrupto. Mas é racista, mal-educado e completamente sem método. Nos anos 70, essa figura inaugurou um tipo diferente de ver os policiais no cinema.

Em vez de ser o herói, esse policial americano inspirado em um homem real, encarna um tipo avesso às regras, que se guia por um sistema ético independente. 

the french connection operacao franca

Junto com o parceiro, Buddy ‘Cloudy’ Russo (Roy Scheider), numa noite qualquer que terminaria em bebedeira, Doyle farejou um problema na mesa ao lado de um bar. Puxando fio a fio, os dois chegam a uma transação de drogas colossal. 

Filmado com muito apetite pelo diretor William Friedkin, “Operação França” é uma obra-prima que praticamente fundou o gênero policial. Antes dele, a Nova York suja e apodrecida apareceu pouco na tela, em histórias maniqueístas, policialescas. 

O diretor americano sempre foi um profissional ousado. Neste filme, por exemplo, ele trabalhou com câmera na mão, fez um baita trabalho de mixagem de som para operar a cidade barulhenta das caçadas urbanas com o tédio da vigilância, e criou a melhor cena de perseguição de carro já feita. 

Quando Doyle vai atrás do matador francês que o emboscou, ele rouba o carro de um civil e zanza na contramão enquanto o suspeito foge de trem. William Friedkin não contou pra ninguém – nem polícia, nem prefeitura – que filmaria a cena, embriagou o motorista do carro, sentou no banco do passageiro com a câmera e gritou “ação”. O resultado é uma sequência de quase 12 minutos filmada naquele ponto de vista que os videogames de corrida popularizaram uns 20 anos depois. O caos é orquestrado como uma ópera e o diretor arranca da sequência o máximo de adrenalina.

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Friedkin em O Exorcista

Outras cenas são igualmente importantes. Mas o final ambíguo e simbólico de “Operação França” é genial. Logo após Doyle balear um parceiro ser alertado por Cloudy, ele dá de ombros. Doyle precisa achar o chefe da transação. Friedkin enclausura a cena com uma cenografia hiper suja do galpão onde ocorreu o crime, enquanto o detetive some dentro da escuridão. Ele ganhou o Oscar de melhor direção e filme.

No ano seguinte, William Friedkin filmou “O Exorcista” (The Exorcist, 1973). O longa é um acontecimento sobrenatural também fora da tela: inundou salas de cinema e escreveu a cartilha de como fazer um filme de terror, até hoje inalcançada. “O Exorcista” elevou o medo ao status de arte, de expressão maior, em vez de rebaixá-lo a um tipo mecânico de efeito dramático. 

Essa capacidade para emergir o medo como uma condição natural do homem, como um sistema defensivo contra o horror da própria vida, está afinado em “O Comboio do Medo” (Sorcerer, 1977), refilmado pelo diretor a partir da obra de Henri-Georges Clouzot. “O Comboio do Medo” é um primor técnico. Também é um filme de mensagem política bem mais acentuada do que o original ao levar quatro marginais para um país na América do Sul e lhes dar a missão de transportar nitroglicerina pela mata à dentro a fim de ganhar um bom dinheiro. O que submerge da sinopse é uma espécie de via crucis para acentuar a sentença final. O filme não foi bem de bilheteria. O diretor foi demitido pelo estúdio.

o comboio do medo

Antes de pegar no roteiro de “Operação França”, Friedkin adaptou a peça “Os Rapazes da Banda” (The Boys in the Band, 1970). O encontro de cinco amigos pra comemoração de um aniversário é, na verdade, um confessionário aberto sobre a difícil vida de quem não é aceito pelo padrão tido como normal. Em 2020, a peça ganhou nova versão pela Netflix com um elenco inteiramente homossexual. Faz uma diferença danada, embora na versão de Friedkin exista uma amargura, uma melancolia e uma maldade mais acentuada.

Nos anos 80, Friedkin pisou o pé no acelerador e bancou mais um filme de temática gay. Dessa vez, ele botou Al Pacino como um policial que precisa investigar um serial killer que mata homossexuais. “Parceiros na Noite” (Cruising, 1980) é outro filme magistral justamente porque seu interesse é estudar os limites do próprio desejo. Al Pacino vai sujar as mãos para impedir a próxima morte ao mesmo tempo em que questiona a sua masculinidade. E também algum fetiche no perigo, na maldade.

Al Pacino vinha de cinco indicações seguidas ao Oscar, mas quase viu a carreira ruir com o filme, que também jogou Friedkin na prateleira de baixo dos grandes diretores americanos por um tempo. 

A poderosa cena de perseguição de carro em “Viver e Morrer em Los Angeles”

Os dois gastaram a sola de sapato atrás de novos projetos. Al Pacino se recuperou mais rápido. E Friedkin, que não tem medo de quase nada, dirigiu outro filme excelente, mas que também foi mal de bilheteria: “Viver e Morrer em Los Angeles” (To Live and Die in L.A., 1985), outro trabalho com uma cena de perseguição ainda mais insana. Depois, trabalhou em uma série de filmes ignorados, até fazer o que poucos diretores fazem: refilmar um clássico. 

“12 Homens e uma Sentença” (12 Angry Men, 1957), dirigido pelo mestre Sidney Lumet, coloca 12 jurados presos em uma sala para unanimemente decidir a sentença de um réu. Um deles tem dúvida sobre a culpa do acusado. 

A versão de Friedkin, de 1997, é cirúrgica. Mesmo seguindo o roteiro do filme original, Friedkin encontra seus próprios demônios e decide enfrentá-los: em vez de testar como os homens agem diante de um sistema corrupto, como Lumet fez a vida inteira, William Friedkin busca a força interna que move as pessoas em direção ao que não é lícito. 

A tese acha respaldo nas falas do próprio diretor. Olha o que ele disse em uma entrevista ao jornal O Tempo, de Belo Horizonte, à época do lançamento de “Possuídos” (Bug, 2007): 

“O que me interessa todas as vezes é o limite entre o bem e o mal, é o fato de que todos nós vivemos nesse limite e isso faz parte das pessoas.”

“Possuídos” foi um dos melhores lançamentos daquele ano. No filme, uma mulher solitária empresta o sofá de casa pra um homem que conheceu em um bar. Eles engatam um relacionamento. E, em uma certa manhã, após despertarem de sonhos intranquilos, apareceram insetos na casa. Aos poucos, a paranoia se instaura e o casal entra em um buraco negro de loucura. Friedkin brinca de Kafka ao escrever sua própria versão de “A Metamorfose”. Mais do que emular uma referência literária, “Possuídos” tem múltiplas leituras, tamanho o simbolismo injetado em cada cena. O próprio diretor definiu seu trabalho como um estudo sobre como as pessoas agem quando se sentem ameaçadas. 

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Cena de Possuídos

Com a direção criativa, Ashley Judd, que interpreta a personagem Agnes White, entrega um grande trabalho. Friedkin filma com a câmera levemente de baixo pra cima, pra rebaixar o teto e reforçar a claustrofobia. A direção de arte do filme também merece destaque. O motel onde Agnes vive parece uma enorme luminária mata-mosquito. E no terceiro ato, quando a paranoia atinge seu ápice, o quarto é coberto de papel laminado. As tomadas aéreas também colaboram muito pra que o espectador sinta o tom ameaçador dessa invasão invisível dos insetos. A câmara é quase um besouro passeando pelo lugar atrás de uma vítima.

Uma das melhores cenas do filme

Paranoico ou real, ao manter o espectador distante desta definição, “Possuídos” torna-se um estudo de personagem perturbador.

Depois de três anos parado, William Friedkin adapta outra peça de teatro. Aliás, interessantíssimo o talento dele pra destravar os textos teatrais e produzir filmes como “Killer Joe – O Matador de Assassinos” (Killer Joe, 2010), disponível no Belas Artes à lá Carte. Um trabalho superlativo, caótico e com uma cena assustadora envolvendo uma coxinha de frango frito. Foi neste filme que Matthew McConaughey provou ser um grande ator. 

Mesmo sendo um filmaço, “Killer Joe” não deveria ser o encerramento da carreira. William Friedkin é um diretor importante, genial em muitos momentos, e com um olhar afiadíssimo para enxergar a maldade por dentro dessa bondade dissimulada e plastificada.

Entre o bem e o mal, o sobrenatural e o ceticismo, o sádico e o gentil, William Friedkin não escolhe a zona cinza. Melhor para o cinema.

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