Sobre o culto ao empreendedorismo no Brasil

A inegável dominância do discurso empreendedor em todos os canais e formatos facilita a disseminação de respostas prontas e inibe questionamentos.

Imagens da designer Roberta Monteiro

Muito é exaustivamente dito sobre a jornada empreendedora no Brasil e no mundo, no entanto, tenho a impressão de que existe um viés condicionante nas narrativas, fazendo-as mais do mesmo.

A curiosidade sobre o não dito: pontos que podem estar “faltando”, escondidos ou esquecidos, me fez começar este artigo, que ganhou vida própria, muitas laudas e ramificações, por isso resolvi dividi-lo em textos distintos. Este é o primeiro e busca fugir da mesmice na maioria das matérias catequizantes sobre o tema.

A inegável dominância do discurso empreendedor em todos os canais e formatos facilita a disseminação de respostas prontas e inibe questionamentos. Mas toda relação econômica e profissional pressupõe também uma relação de poder e talvez seja interessante a gente se perguntar:  

  • Quem se beneficia do empreendedorismo? 
  • A quem servem os empreendedores?
  • Quais os interesses de uma construção ideológica tão forte? 
  • Que tipo de impactos isso gera nos mercados, nas relações de trabalho, em nossa cultura e nas pessoas?

Algumas pistas podem estar aqui, por isso chamo de hipóteses. E pra começar, sim, o sujeito do artigo se refere o gênero masculino, porque falo do empreendedor mesmo, o esteriótipo startupeiro. Infelizmente ainda há pouca diversidade no meio, por mais que melhore aos poucos. Vou me concentrar na figura do homem, hétero, branco, de classe média-alta, que, em grande maioria estudou em escolas particulares, aprendeu língua estrangeira, enfim, oriundo de um lugar de privilégios e que não empreende por necessidade. 

PARADIGMAS GERACIONAIS

Toda geração tem sua referência de sucesso profissional. Na época dos meus pais, era ser funcionário público ou engenheiro em empreiteiras nas grandes obras de infraestrutura do país. 

A turma um pouco mais velha que eu viveu a febre yuppie de Wall Street, com centenas de referências em nossa indústria cultural (veja: Psicopata Americano; Wall Street: Poder e Cobiça; Lobo de WallStreet).

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Para minha turma, a referência eram os Programas de Trainee. Sucesso em meados da década de 90 até meados de 2000 era passar por processos seletivos com milhares de candidatos para ter uma entrada VIP no ambiente corporativo, se tornar gerente antes dos 30 anos e fazer o 1º milhão antes dos 40. 

Na sequência veio a epidemia empreendedora que vou detalhar adiante, e que por sua vez, já começa a ser substituída pelo protagonismo na produção de conteúdo independente (youtube, podcasts, tiktok, produtos digitais, etc). 

O DILEMA DO BONSAI

Nas décadas de 80, 90 e anos 2000, o ícone do executivo bem sucedido seduziu boa parte da classe privilegiada (já definida acima). Empresas selecionavam os high-potentials (claro, um texto sobre empreendedorismo precisa ser recheado de termos em inglês), investiam muito em regalias e desenvolvimento, o que, com o tempo, fez emergir o paradoxo do BONSAI = quando um executivo finalmente terminava seu ciclo de desenvolvimento e amadurecia, ia embora, seduzido por ofertas do mercado ou da concorrência. Quando fica BON, ele SAI.

As empresas reagiram aumentando bônus, criando pacotes de benefícios mais atrativos ou exigindo cláusulas de confidencialidade restritiva, que obrigavam seus líderes estratégicos a ficar de 6 meses a 1 ano fora do mercado antes de aceitar um novo emprego. 

É assim que nasce a definição contemporânea do “ano sabático”, período de quarentena executiva. E quem levou vantagem nessa história? As escolas de negócios. O maior crescimento do setor ocorre justamente neste período, pois as escolas criaram produtos (cursos, MBAs) para atender aos quarentenados. Como muitos dos melhores nomes passaram por esse tipo de quarentena, boa parte dedicou seu tempo em cursos de Harvard, Stanford, MIT, INSEAD. Demorou pouco para que os programas destas instituições se tornassem a próxima chancela sexy no currículo de quem se considerava ou desejava estar no topo da pirâmide profissional. 

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A dança das cadeiras corporativa provocou um impacto claro: ótimo retorno para os executivos e péssimo para as empresas. Eles recebiam salários astronômicos, mas como eram cobiçados, giravam num trampolim de uma empresa a outra, elevando suas qualificações pessoais, o saldo de suas contas bancárias e sem o menor compromisso com as empresas para quais trabalhavam, menos ainda com visão ou decisões de longo prazo. 

O importante era apresentar resultados rápidos para garantir o bônus anual. O pensamento de curto prazo semeou péssimas decisões e colheu impactos extremamente negativos com o passar dos anos. Alguns casos são emblemáticos, como EnronWorldComArthur Andersen e HealthSouth. O ponto culminante dessa cultura foi a crise de 2008 que, obviamente, é bem mais complexa e tem outras causas, mas esta, com certeza, é uma delas. 

COMO LIDAR COM A DANÇA DAS CADEIRAS?

Imagine um arranjo que permite atrair os melhores talentos, fazer com que eles trabalhem com mais engajamento, em organizações mais leves, dinâmicas, que proporcionem uma experiência interna tão boa que as pessoas nem vão querer voltar pra casa. Mais do que uma empresa ou um trabalho, acontece um apaixonamento pelas ideias em si. 

“E se a gente não tivesse que empregar nossos líderes mais diferenciados? Podemos incentivá-los a perseguir seus sonhos, serem donos de seus próprios negócios e assim, trocamos de lugar, nos tornamos investidores.” Alguém pode ou deve ter pensado. 

Quais os resultados? Redução dos riscos, pois a startup está nas mãos e sob a reputação do indivíduo, não de seus investidores. Evita-se a perda de tempo e milhões na curva de preparação dos C-Suites, que podem trocar de empresas e levar embora o conhecimento. Do outro lado, o empreendedor pode inclusive servir a outros players de mercado, diversificando fontes de receita e elevando margens sobre seu talento. Estando em seu próprio negócio, vai se dedicar infinitamente mais, custando muito menos.

Em linhas gerais, salvo algumas exceções, respondem aos mesmos donos da banca. Na verdade é uma relação de dominação subjetiva, pois no mundo do trabalho, pelo menos o chefe é personificado, tem cara, ao contrário de um fundo, um board ou uma estrutura indireta qualquer, quase numa relação entre deuses e mortais, membros de mundos diferentes. Mesmo assim a construção ideológica do novo arranjo ainda parece mais sedutora ao indivíduo. 

Gosto da frase: “a maioria empreendedores não está disposta às dores de ser empresário”, ou seja, é gostosa essa sensação de criar e acelerar uma ideia, mas os compromissos e as necessidades para solidificar uma organização são outro papo. 

Não digo que o empreendedorismo foi criado como solução para os dilemas das grandes organizações. Mas não tenho dúvidas de que foi aproveitado e transformado em objeto de desejo, glorificando o empreendedor, influenciando nossa indústria cultural, o comportamento e os desejos de uma geração para atender a interesses muito além do ecossistema.

PENSA COMIGO

  • Boa parte das startups funcionam a partir das brechas deixadas pelas grandes organizações. São como aquele pássaro que se alimenta do que sobra na boca do crocodilo. Elas cobrem os gaps ignorados (propositalmente ou não) por estruturas complexas e rígidas demais para reagir em tempo necessário. 
  • Empreendedores não pedem demissão, não representam uma despesa trabalhista, não se desengajam, pois nada desperta mais pertencimento do que a sensação de propriedade, ou será que é a noção de propriedade que gera pertencimento? A retenção deixa de ser o problema. 
  • Empresas menores possuem mais agilidade, reagem rápido e podem construir uma cultura do zero. Isso é muito mais fácil do que mudar uma cultura corporativa estabelecida ou imprimir outro ritmo em sistemas complexos demais.
  • As novas culturas são capazes de absorver os aspectos pessoais e autorais daqueles que fazem parte dela. O senso de reconhecimento individual e da tangibilização de cada contribuição ficam mais perceptíveis, pois o esforço ainda não foi distribuído, setorizado e despersonalizado em escala global, como em grandes organizações, inseridas a uma cadeia impessoal onde ninguém sabe exatamente o que, nem por que faz o que faz. 
  • Startups se tornam uma extensão da casa e da vida pessoal dos sonhos da geração entre 18-24 anos. Colorida, sem escritórios, repleta de indulgências e todo o checklist do kit cool-criativo. Assim, as pessoas se sentem mais à vontade, rompem a barreira entre o pessoal e o profissional, compartilham a vida e se conectam ao ponto de formar uma semi-seita que abarca a casa, a profissão, o social e a diversão. Isso faz com que trabalhem mais horas, mais dedicadas, por um salário menor, afinal, se forem realmente “foda” e acreditarem no sonho, devem fazer mais com menos. Muitos autores já analisaram a seita Google e Facebook, por exemplo. Há inclusive um filme pop sobre o tema, chama-se The Circle.
  • No fim das contas, uma startup está sempre em busca de investidores, esta é a métrica de sucesso. Alguém que invista ou te compre. Mais uma debate: startups devem existir para criar e validar novos modelos de negócio que se refletem em grandes ganhos para os que apostaram na ideia; ou para resolver problemas das pessoas/sociedade/mercado e assim gerar valor sustentável, recebendo investimento que correspondente? 
  • Claro, a lógica dos investimentos é fundamental, uma vez que, em tese, estão fazendo uma aposta ainda incerta. Mas destaco essa subserviência ao capital externo, apenas para contextualizar o desfecho decorrente. Empreendedores são uma versão hipster atualizada dos executivos da década de 90. Follow the money e descobrirá que respondem aos mesmos chefes ou grupos, convertidos num novo arranjo de trabalho, indireto, subjetivo, que inspira a propriedade e acomoda a tarefa impossível de manter high potentials em seus quadros organizacionais. 
  • A diferença é que este chefe agora está mais blindado, pois o fracasso pode ser isolado e personalizado na figura do empreendedor. Investidores também perdem dinheiro e correm riscos, mas com conexões, diversificação, escala e conselhos cada vez mais controladores, no longo prazo, saem ganhando. 
  • Para cada empreendedor de sucesso existe algum acionista ou investidor ganhando muito mais dinheiro por trás. E a regra não se aplica ao fracasso. É fácil encontrar empreendedores que falharam e ainda assim enriqueceram seus investidores. Dada a natureza dos arranjos em rodadas de investimento, muitas vezes quem menos ganha é o empreendedor, pois a prioridade é do investidor, que não tem cara, é uma representação do dinheiro de várias pessoas sob uma chancela simbólica. Na outra ponta, a pressão tem um peso infinitamente desproporcional, o fracasso tem cara, isola e frita sua vítima, protegendo o sistema.
  • Quando grandes investidores entram na jogada, boa parte das startups vivem o dilema de trabalhar para atender aos interesses dos clientes ou de seus acionistas / investidores. A quem seguir?
  • O empreendedor pode ser a melhor pessoa para criar e testar uma ideia, mas nem sempre será a melhor pessoa para fazer relação com investidores e muito menos para levar a startup ao status de empresa. Muitos se destroem ou atrapalham os próprios negócios neste momento. Raramente encontra-se uma pessoa que seja boa nos 3 papéis, mas como founder, é difícil desapegar e passar o bastão a quem possa ser melhor. Pergunte a qualquer empreendedor sobre estes dilemas e ouvirá boas histórias sobre conflitos de interesse. 
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A IGREJA DO REINO DOS STARTUPEIROS

Transformamos a figura dos empreendedores nos novos astros, onde reconhecimento e a notoriedade têm muito mais a ver com os números e aparências do que com o valor produzido.

Para todo astro existe uma platéia que aplaude, num ciclo que se retroalimenta. A fogueira das vaidades salta aos olhos e obviamente, produz sua versão fast-food/fast-fashion por aqui. Gosto de chamá-los de startupeiros. Para cada 1.000 startupeiros, encontra-se 1 empreendedor.

De quem é a responsabilidade? Uma bolha surge entregando conveniências agradáveis, mas superficiais. Pouquíssimas iniciativas se conectam com os verdadeiros desafios do planeta ou da humanidade: fome, violência, educação, saúde. E você pode protestar: “Mas esses grandes problemas não dão dinheiro!” 

Será? Nada contra o dinheiro, mas talvez, com toda a energia criativa de uma geração canalizada a questões fundamentais, chegaríamos a um ótimo retorno financeiro e mais valor sistêmico no mundo. De qualquer forma seria melhor de que termos mais um marketplace ou app CTRL C + CTRL V de uma solução gringa. 

Durante anos jovens desejaram ser atletas, estrelas de Hollywood ou rockstars. Hoje querem ser Steve Jobs, Elon Musk e Jeff Bezos. Qual o problema com isso? Nenhum, é um sinal geracional. O problema está na construção mítica meritocrática deste empreendedor. Esse cara que trabalha 16 horas por dia, leu todos os livros de aeroporto e depois escreveu o próprio, com sua saga e receitas de sucesso, parece onipresente, cheio de frases de efeito e ainda pratica esportes radicais nas horas vagas. 

Alguns inclusive passam a faturar mais sendo um personagem do que com a própria empresa que criaram. Poderia citar uma dezena. Melhor evitar a fadiga. Nada contra as pessoas por trás desses mitos. O desconforto está na glorificação deste ideal: “Seja foda, trabalhe mais do que todos, siga seus sonhos e abracadabra milhões = felicidade”. Foi mal gente, é mentira. 

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OS FIÉIS 

O buzz formou uma legião de startupeiros mais apaixonados pelo sucesso do que na entrega de valor para pessoas. E quando falo em valor para as pessoas, não estou falando de negócios com impacto social. Veja a lista das 100 maiores startups ou mais reconhecidas do Brasil. Qual delas está resolvendo um problema que realmente importa?

Não que sejam más empresas ou que não deveriam existir. Mas elas são, em grande maioria, provedoras de conveniências superficiais e se deixassem de existir amanhã, ninguém sentiria falta, embora talvez tenhamos um pouco mais de trabalho executar essa ou aquela tarefa. 

Isso significa que temos todo um potencial alocado, mais preocupado com o app de pedir comida, comprar ingresso ou alugar um apartamento, do que em encontrar a cura para doenças, resolver a educação à distância, combater o viés da violência policial ou filtrar as fakenews que iludem milhares de eleitores, por exemplo. 

Temos não só o potencial, como todo um exército de candidatos super qualificados na fila por uma oportunidade nas startups ou empresas de base tecnológica (muitas já não são mais startups) mais desejadas. Uma sistema de alienação e distanciamento social cada vez maior entre realidades. Privatizamos a inteligência e reforçamos diferenças sociais.

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FRITANDO A MENTE

Os efeitos tóxicos de toda a dinâmica descrita acima impacta profundamente a saúde mental dos empreendedores. A maior parte já viveu algum momento de burn-out, boa parte toma remédios controlados, recebem acompanhamento e possuem fortes desafios em suas relações pessoais. Mais uma vez, sem juízo de valor. Cada tempo tem suas doenças. Estamos cuidando dessas pessoas ou apenas aumentando a temperatura pra ver qual o grau de pressão elas aguentam? 

Nos anos 80 a cocaína criou enormes estragos na turma do mercado financeiro. Hoje moemos indivíduos com expectativas superestimadas, menos segurança social e a necessidade constante de parecer, além de ser foda. Não basta criar e gerir um negócio, é preciso expor presença. Exaltamos o sacrifício justificado pelo sucesso aparente. Criamos um parâmetro perverso. Uma corrida que não termina, que submete pessoas a pactos com o diabo na hora de fechar rodadas de investimento para satisfazer métricas de vaidade da ordem social que seguem cegamente. 

E COMO ESSA HISTÓRIA ACABA? 

Quando comecei a escrever este artigo, não pensei em respostas categóricas. Mais uma vez, reforço que aqui não há um juízo de valor sobre empreendedorismo como comportamento. Pelo contrário, acredito fundamentalmente no valor do trabalho de muita gente boa por aí, talvez, como em tudo na vida, com mais calibragem e transparência. 

Talvez o que eu queira fazer seja provocar divergências, debates, conversas. De qualquer forma, se você veio até aqui, concordando ou não, obrigado. Se quiser, vamos falar sobre do tema.

No próximo texto, pretendo falar sobre qual o impacto dessa onda empreendedora sobre as organizações tradicionais, formando o que chamo de circo da inovação.

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