O culto da personalidade. Da era da informação para a era da atitude

Dos perigos de atribuir qualidade à mensagem baseado na percepção atitude do mensageiro.

Lembra dessa? Deixa aí rolando de trilha do post.

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I sell the things you need to be
I’m the smiling face on your T.V.
I’m the cult of personality
I exploit you still you love me

Já dizia o Living Color em 1988. E mal sabíamos a proporção que isso iria ganhar.

Passamos da era da informação para a era da personalidade. 

Há tanto conteúdo em circulação, que as pessoas acabam desenvolvendo um filtro baseado na persona da fonte. A mensagem é influenciada não mais pelo “meio”, mas sim especificamente pelo mensageiro. Como sempre fizemos, mas agora em escala muito maior.

Ou seja: o conteúdo ganha ou perde atratividade mais baseado nas caraterísticas do emissor do que no conteúdo em sí. “Quem falou” tem mais influencia do que “o que foi falado”, o que explica inclusive o sucesso de videos em detrimento de textos.

E como causa (e consequência) desse fenômeno, todo indivíduo moderno é incentivado a cultivar sua marca pessoal, seja de forma consciente ou não. E assim, diariamente, bilhões de pessoas administram suas mensagens com o mesmo cuidado e profissionalismo que as marcas comerciais. Na verdade, muitas pessoas físicas tem administrado suas imagens melhor do que as marcas e serviços de consumo comercial.

Mas isso é necessariamente ruim?

Bom, como quase tudo… depende.

Uma faca é uma faca. Você pode usar pra passar manteiga no pão ou pra matar alguém. E no fim das contas, não dá para culpar as plataformas e as ferramentas, porque elas simplesmente são facilitadores do fluxo do que nós escolhemos para circular. O problema é que essa configuração favorece os que tem “mais personalidade”.

Por exemplo, outro dia achei engraçado uma executiva no LinkedIn se dizendo “cansada da maneira como as pessoas tratam a… Anitta” (no LinkedIn hein). E a justificativa era que a Anitta tinha sim “muita atitude” e que “sempre foi desbocada mesmo, fala o que pensa e incomoda” como se isso fosse, por sí só, uma virtude.

Esse truque de se usar atitude como virtude já foi usada com sucesso muitas vezes na história humana.

Sabe quem fazia isso muito bem? Hitler.
E todos os outros ditadores, de modo geral (como diz o Corey Glover no video do alto do post… “like Mussolini and Kennedy”)

Hitler sempre teve muita atitude. E sempre foi desbocado. E sempre falava o que pensava e não tava nem aí se os outros iam concordar ou não. Mas isso não o transformou automaticamente em uma pessoa boa, porque obviamente ele usava sua personalidade para impulsionar valores errados.

Claro que não estou comparando a Anitta com o Hitler, é apenas um exemplo extremo do quanto as pessoas embarcam fácil nessa ilusão da “atitude”. É um onboarding aspiracional, de achar que alguém que fala alto, que mexe o pescocinho na horizontal e que chama atenção com lacração tem sempre razão ou virtude.

Essa é a principal desvantagem nessa nova dinâmica do culto à personalidade: os que realmente tem algo a dizer, podem não ter o brilho necessário. E os que não tem algo a dizer, podem ser mestres do palco digital. 

Sócrates não era exatamente um sujeito simpático. Ou mesmo charmoso.

Kierkeegard foi comparado a uma aranha, de tão asqueroso. 

A natureza doentia de Nietzsche desmentia suas máximas. Era o próprio “faça o que eu falo mas não faça o que eu faço”.

Como será que esses grandes pensadores se sairiam hoje em dia, no Instagram ou no TikTok?

E não se trata só de conteúdo cabeçudo. O mesmo se aplica ao entretenimento e a cultura de forma geral. Por décadas a indústria fonográfica funcionou como gatekeeper da música, mas agora que temos acesso a mais de 50 milhões de músicas ao alcance de um clique… o que circula nas top 100 do mundo? Por que tanta coisa ruim?

Os veículos perderam seu status de gatekeepers e curadores, mas acabamos os substituindo por gente “com personalidade”, o que pode ser ainda pior. Principalmente para as futuras gerações, que vão crescer com esse tipo de repertório raso.

Mais pernicioso ainda é o modo como a personalização das idéias leva a superficialidade. Os grandes filósofos e oradores usavam sim suas personas, mas como forma de atrair a atenção para algo além deles mesmos – usavam suas personalidades para embalar princípios mais amplos, profundos e maiores do que podem ser contidos em qualquer indivíduo. 

Hoje nosso foco é na própria mão que gesticula.

Dizem que as grandes mentes discutem ideias, as medianas discutem eventos e as pequenas discutem personalidades. O que pensar então de SOCIEDADES inteiras que discutem ideias. . . através de personalidades?

Conteúdo bom perde a paternidade e funciona independentemente de reconhecimento de autoria. Conteúdo bom é maior do que eu ou você. Conteúdo bom vira domínio público.

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