A era da entreteligência

Conversas sobre a crise no entretenimento e como atravessar essa tempestade.

O que é de fato entreter? É prender ou desviar a concentração? Neste momento em que a economia se baseia na atenção das pessoas para vender, tem muita gente chamando de entretenimento o que na verdade é interrupção.

Navegar pelo entretenimento, hoje em dia, requer mais do que só talento ou investimento, é preciso observação e sagacidade. Esse conceito, que chamei de “entreteligência”, nasceu de um papo que tive com um dos marqueteiros mais entendidos do assunto, Marcelo Ferronato. Ele conhece intrinsecamente como é a estratégia que une inteligência e alma no conteúdo: a RedBull.

Na verdade, este texto baseia-se em algumas conversas de fim de ano que tive com pessoas que admiro e entendem muito do riscado.

Luiz Gustavo Pacete, por exemplo, talvez um dos mais influentes jornalistas de inovação da atualidade, fez um post citando um artigo que aborda a diferença entre comunidade e audiência, e falávamos disso como uma possível solução para a distribuição de propriedades intelectuais de entretenimento. Outro exemplo bom, que surgiu nesse mesmo diálogo, foram acontecimentos recentes sobre a Netflix: a possível compra da líder de streaming pela Microsoft, o lançamento de vídeos de treinamento em parceria com a Nike, e a estratégia de lançamento de sua série original “Wandinha”, que teve sucesso também no TikTok devido a uma dança específica da protagonista.

As três notícias têm uma coisa em comum: marcas se unindo para explorar a atenção do público.

A Microsoft já havia feito a maior compra do setor de games, adquirindo a Blizzard, sinalizando ter entendido o poder do engajamento de uma comunidade. Empresa de Marketing antes de qualquer coisa, a Nike sempre soube fazer boas parcerias para entreter seus consumidores, vide os tênis conectados com apps da Apple e os sneakers vendidos em formato de NFT. E o TikTok, plataforma escolhida pela Geração Z para se expressar, tem regras próprias e é hoje a melhor plataforma para um viral possivelmente nascer e expandir.

O que nos faz pensar, então, que entreter também é criar conexão (além daquela que as estórias criam). Talvez o segredo do sucesso de tantos “colabs” esteja no compartilhamento de comunidades já estabelecidas. Como se, para furar a bolha e aumentar o consumo, fosse preciso um embaixador de outro território para trazer autenticidade e validação. Autores (marcas) devem então publicar (arriscar) para encontrar seu crescimento.

Há um frase atribuída ao autor francês Andre Breton, um dos fundadores do Surrealismo, que diz: “publicamos para encontrar camaradas”, em tradução livre. Talvez o poeta quisesse dizer que, mais do que escrever pra se fazer entender, devemos escrever (ou filmar, ou compor) para que pessoas se encontrem, ou se juntem em volta de uma ideia ou de um conteúdo, formando essa tal de camaradagem.

No episódio sobre “História” do podcast para crianças “Maritaca”, criado por Mariana Piza, a Áurea (conhecida neste fórum) cravou a frase: “livros são amigos de papel”. Além de brilhante, a frase simboliza o verdadeiro lugar do entretenimento: um amigo, um camarada ou companheiro para a vida. Preencher com conteúdo a solidão que assola o ser humano há gerações tem se tornado cada vez mais eficiente, e portanto não falta formato ou plataforma para que possamos consumir avidamente quando estamos sozinhos.

Um exemplo são os Hikikomori, provando o quão contundente é o espaço que o conteúdo ocupa na vida de pessoas que não conseguem – ou não querem mais – conviver em sociedade. Mas isso vale um artigo à parte.

Retomando a crise mencionada no início deste texto, ela persiste, pra alguns especialistas, porque estamos em uma transição de modelo socioeconômico. Na mídia isso fica ainda mais intenso: antes, poucos produziam para muitos consumirem. Não é preciso dizer o que computadores e internet fizeram com o mercado da música, ou de filmes, ou de entretenimento em geral: hoje, nunca se consumiu tanto conteúdo produzido por ferramentas tão democráticas – e a tendência disso, com a tecnologia, é só aumentar.

Daí que nasça, talvez, a empolgação sobre Web3, um sistema no qual teoricamente você consome, cria, se relaciona e é dono de coisas. Por isso falou-se tanto em metaverso, porque seria possível fazer quase tudo o que fazemos na vida real, mas dentro de um mundo estritamente digital – com suas vantagens e desvantagens.

Em uma conversa com Pedro Pizzolato, sócio e co-fundador da WIP, ele disse: “o problema desse discurso é achar que será uma panaceia” …. “se a pessoa sabe conquistar e empreender ativos no mundo real, vai saber também no digital … mas se o cara é explorado, pode fazer uma ‘Web18’ que vai dar ruim.” Mas Pedro também vê uma luz no fim do túnel: “a grande virada virá daqui uns quinze ou vinte anos, quando os nativos da Web3 vão pensar no mundo tendo como ponto de partida essa ferramenta” … “vai ser natural pensar negócios e instâncias digitais nesse futuro.”

Então ser natural de um ambiente também tem suas vantagens na construção do entretenimento. Podemos dizer que não é a ferramenta ou o formato que definem a relação entre as pessoas, mas talvez como o autor se entrega ao que produz.

Tive a chance de entrevistar Meg LeFauve, uma das roteiristas de “Divertidamente“. Entre muitas coisas incríveis que dividiu comigo, ela contou sobre como, depois de cem tratamentos do script, só conseguiu resolver o filme quando tocou em um tema muito íntimo, algo entre ela e sua irmã. E o que afinal vemos na tela é um relato profundo que prova que quanto mais sincero for o autor, mais chances ele terá de se conectar.

Isso me lembrou uma conversa com Luciano, um motorista de taxi, dizendo que o que tinha visto no carro dele daria um livro. Perguntei por que ele não havia escrito ainda e aproveitei para lhe dar três razões pra não perder tempo:

  1. Ao escrever, você se apresenta para o mundo.
    E antes de encontrar fama, você encontrará empatia;
  2. Ao escrever, você cria um novo ativo financeiro
    – uma Propriedade Intelectual para chamar de sua;
  3. Ao escrever, você une o consciente ao inconsciente
    e acabará se conhecendo mais do que nunca.

Não sei se o Luciano vai escreveu o livro ou não, mas acabou não me cobrando a corrida. Acho que o que mais o tocou foi a parte de se conhecer ao escrever, um processo único que coloca seus pensamentos em ordem ao transferir para a página o interno e o externo revelando quem você é. Esse processo de escrita é realmente único, e qualquer conteúdo que você venha a fazer, se quiser entreter de verdade, vai ter que passar por esse movimento mágico de traçar palavras.

O interessante desse raciocínio é que, novamente, nos coloca diante de uma discussão atual: o que é ser artista, ou, mais do que isso, o que é criar arte. Ilustradores do mundo todo se uniram contra ferramentas de AI (artificial intelligence), em resposta a um frenesi que começou com artistas – e não artistas – utilizando “prompts” para criar obras únicas com auxílio desses sites. Agora que o uso dessas imagens se dá também no âmbito comercial, no entanto, falava-se já de outra coisa: a substituição de profissionais humanos por autômatos.

Fazer ilustrações com upload de apenas uma foto deixou um gosto ruim na boca de quem vive desse trabalho. A má notícia é que não é a primeira vez que isso acontece – e não será a última. Não estou falando de robôs trabalhando para humanos, mas de ferramentas que democratizam a técnica de fazer arte, deixando artistas preocupados. A democratização sempre cria oportunidades para uns e aumenta a concorrência para outros.

Em tempo: a palavra “robô” surgiu no livro “R.U.R.: Robôs Universais de Rossum”, texto da peça do dramaturgo Karel Čapek. O termo foi cunhado por seu irmão e vem do tcheco “robota”, que é sinônimo de trabalho escravo.

Algoritmos, base desses AI, fazem parte de tudo hoje, e é inegável seu poder. Tomam decisões mais rápido que nós, mas não exatamente melhores. Na busca sem fim pela eficiência – porque há muita demanda –, fizeram com que erros fossem cometidos, principalmente aprofundando preconceitos da nossa sociedade. Tanto nos AI de ilustração, como Dall-E e Midjourney, ou de sugestão de conteúdo, como os streamings de vídeo ou música, a tendência do algoritmo é se basear em uma equação criada originalmente por mentes humanas e, consequentemente, com o julgamento desses decisores.

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Terminator feelings: Gráfico da newsletter diária da CB INSIGHTS que mostra a evolução da Skynet, quero dizer, da inteligência artificial.

Portanto, o que temos ainda são humanos criando e robôs copiando, por enquanto. Assim como os “nativos” da Web3, um dia os seres “artificiais” vão começar a criar baseados em suas próprias experiências. E isso não deve demorar: já existe uma linguagem que só os computadores entendem, chamada AI Black Box, e que cria algum desconforto nos humanos. Se isso é possível, talvez o computador já possa criar algo singularmente único e a gente não tenha a inteligência de entender.

A Newsletter MargeM 203 aponta um texto do “The Atlantic” que diz: “Essa nova safra de tecnologias de AI generativas parece possuir qualidades que são mais indelevelmente humanas. Chame isso de síntese criativa – a incrível capacidade de canalizar ideias, informações e influências artísticas para produzir um trabalho original.” A MargeM também cita uma transcrição de um podcast do The New York Times em que o título já entrega tudo: “Será que a inteligência artificial ficou esperta demais?”.

Trocando mensagens de Whatsapp com Kako (meu irmão), que é ilustrador (o melhor do mundo) e criador de mundos (nos melhores games), falávamos de arte e AI. Ele havia me mostrado um post da “AI Art Universe” que trazia a seguinte pergunta: “AI Art is really Art?”. A tread do post não teve conclusão, mas nos lembrou de algo que vale dizer: de todas as atividades humanas, arte é a única coisa que fazemos em que o propósito e sentido está em si mesma. Seria diferente para um AI um dia?

A pergunta para nossa discussão, então, poderia ser: seria diferente para uma marca? Com certeza não é diferente para Netflix, nem para Microsoft, Nike, Apple, Redbull ou TikTok, e então por que seria para a sua? Você certamente já investe muito em mídia de performance para que seu conteúdo chegue em quem interessa, mas você está entretendo ou interrompendo com essa comunicação? Está gerando conexão ou se afastando?

Entreter é se expor, e não há espaço para fingir. Usar a inteligência, humana ou artificial, para entreter é entender que descrever um produto DVNB em meio ao conteúdo de um influenciador ou criar um metaverso para pessoas visitarem sem propósito é interromper. Agora, abrir um diálogo (e o coração) para conversar com sua comunidade é entender o poder que nativos desse mundo têm a dizer sobre você.

Eles irão contar sua história eventualmente.

Usar essa mente coletiva a seu favor é a melhor forma de entreter. Ninguém sabe o que vai acontecer depois desta tempestade, mas com certeza, ao atravessar esse oceano, forjaremos a nossa entreteligência juntos.

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