The White Lotus e o Anjo Exterminador

Onde a série da HBO Max e a obra-prima de Luis Buñel podem se encontrar?

Existe uma dessas frases populares da internet que diz: “conheci uma pessoa tão pobre, tão pobre, que a única coisa que ela tinha era dinheiro”. 

Talvez, o autor da frase tenha dado de cara com Tanya McQuoid, a hilária personagem da série The White Lotus, interpretada pela atriz Jennifer Coolidge. 

A segunda temporada da criação de Mike White, que está disponível na HBO MAX, novamente enclausura um bando de ricos em um hotel paradisíaco a fim de extrair a seiva mais ridícula, mesquinha e propositalmente nefasta que as elites conservam com requinte de sommelier de vinho velho. 

Se na primeira leva de episódios havia um foco nas luta de classes entre patrões e empregados, agora a série trabalha essas camadas usando o sexo como cola. É a partir dele que se estabelece e se desenvolvem vínculos emocionais, sociais, intelectuais, de gênero e físicos. 

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Cena de The White Lotus

O sistema solar criado por Mike White parte da premissa de que sexo, amor e poder se relacionam, mas vivem em galáxias opostos. Na impossível conciliação entre elas, sobra aos ricos um vazio existencial difícil de tapar. Tanya corre pelo o mundo atrás do hotel que lhe dá conforto. O casamento com Greg (Jon Gries) está apático, ele some por dois dias, e a solidão se impõe como uma amarga herança trabalhista. 

Outros personagens dividem o mesmo serviço de quarto. Bert (F. Murray Abraham), Don (Michael Imperioli) e Abbie (Adam DiMarco) estão na Itália, a locação da vez, para encontrar parentes perdidos. Avô, pai e filho, contudo, são incapazes de notar que a busca por esse elo é fragmentada, displicente, quase como uma desculpa para justificar quem eles são com a perspectiva de quem eles foram

Na esteira, há outros personagens menos interessantes como Lucia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò), e Portia (Haley Lu Richardson), mas igualmente atreladas a uma certa submissão sexual e amorosa. Se sobra consciência disso a Lucia, a prostituta, falta muita malícia a Portia, a assistente de Tanya. 

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Luis Buñel

Em 1962, O Anjo Exterminador contava a história de um bando de ricaços que, após um jantar na mansão do anfitrião, não conseguem sair do lugar. Esta obra-prima do espanhol Luis Buñel, disponível no Belas Artes a la Carte, até hoje revira o estômago de quem busca significados para a penca de símbolos espalhados ao longo do filme. Mas, a superfície da coisa é visível: em uma situação extrema, a elite se iguala aos animais que critica, embora permaneça segura de ser consumida pela realidade. A revolução, o estado extremo, acontece dentro da sala de casa. 

O filme é uma maravilha. Sombrio, brilhantemente bem escrito, e perturbador. Mistura religião e poder de maneira inquietante sem ser um tipo cult que afasta, ou parece sem sentido.

O final de Anjo Exterminador bota o elenco – já libertado – em uma missa de domingo. Quando acaba a liturgia, as pessoas dentro da igreja não conseguem sair. A cena é cortada pela polícia abatendo trabalhadores e, sem seguida, a igreja é invadida por ovelhas. Sendo os cordeiros um símbolo de sacrifício comum à cultura cristã, Buñel inverte os significados: os pecados não precisam ser julgados porque o perdão faz parte da herança. 

Mike White já contou que a terceira temporada de The White Lotus vai tratar de religião… 

Os finais das duas temporadas de The White Lotus não têm a mesma carga surrealista ou a genialidade do filme de Buñel, é verdade. Mas, faz jogo parecido. 

Os ricos da série tem seus finais praticamente intactos, livrados da pobreza externa, ao mesmo tempo em que tem a vida remexida pela miséria interna, pela mesquinharia e inutilidade de si mesmos. O choque de se enxergarem no espelho diz o quê?   

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Cena de O Anjo Exterminador

O anjo exterminador faz uma bagunça na vida de alguns personagens da série. A sua visita coloca-os na boca do lago, olhando para seus rostos e se apaixonando pelo que não são. Não há beleza, humanidade, vivacidade, delicadeza e humildade. Não há humanidade. O reflexo é turvo e malquisto. 

Isso importa? Nos dois casos, o dinheiro define espaços e surrupia o peso da presença; ignora histórias e “compra até amor verdadeiro”. Greg não precisou amar Tanya “durante quinze meses e onze contos de réis” porque, assim como sua esposa, tem a própria delinquência a ser vendida. Os ricos fazendo fogueira no meio da sala em O Anjo Exterminador e ignorando as necessidades básicas um do outro também. São geniais as censa onde o mordomo come papel e onde o mesmo personagem quebra um cano na parede fazendo os convidados disputarem o riacho de água.

Se a gente pesar um pouquinho, Buñel trabalha aqui dois milagres bíblicos: o momento quando Moisés rompe uma pedra tirando água e leite, e em outro, quando o diabo tenta Jesus instigando a transformar pedras em pães. São momentos sublimes que provam o tamanho do filme, e todos elementos criados.

White Lotus trabalha menos os elementos sacros. E parece mais óbvia, embora bem-feita. Mike White usa uma cena para brincar com isso: quando Mia e o cantor do bar vão se pegar dentro de uma capela.

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Mike White, criador de The White Lotus

Se toda a segunda temporada da série gira em torno do sexo como uma moeda, sua mensagem é muito mais direta: o dinheiro é um poder que corrompe. De certa forma, ele precisa disso pra que tenha valor. O sexo, a paixão, a liberdade que o amor dá, são artigos igualmente comprados. Nomes diferentes para o mesmo prazer e sentença: não dá pra sair. Todos os personagens ricos da série parecem presos a um lugar, comportamento ou herança.

Sejam as pessoas incapazes de sair da sala de uma mansão ou de um hotel de luxo na Sicília, o possível elo entre a série de White com a genialidade do filme de Buñel na radiografia de suas elites, é a incrível surpresa de quem está de fora desse ciclo do quão profunda pode ser a mesquinharia humana. Os ricos até botaram uma etiqueta, mas a filosofia segue barata: são tão pobres que a única coisa que conseguem ter é dinheiro. 

Na série ou no filme, a pergunta por trás dessa indignação inocentemente proletária ainda se repete: existe quem o negue?

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