Quando tudo acabar: dois livros para descobrir em 2023

Joan Didion e Fernanda Torres fazem reflexões criativas, originais e emotivas sobre um dos maiores mistérios do mundo: a morte.

Álvaro é um octogenário frustrado. Ciro é um galã irresistível que se conserva apesar do tempo. Silvio é o oposto. Fala 10 baixarias por segundo, transa com quem aparece na sua frente e vive uma crise de meia idade mais acentuada do que os outros dois amigos. Neto, o único preto do grupo, não compreendeu o próprio lugar no mundo, e Ribeiro é um cara que se recusa a envelhecer. Os personagens principais de Fim (Companhia das Letras, 200 páginas), primeiro romance de Fernanda Torres, lançado em 2012, vivem uma finitude eterna. Não importa qual seja a ocasião ou a ordem das coisas, o fim vem primeiro. 

O que é mágico no recorte que a atriz e escritora faz desses homens cariocas durante os anos 70, 80 e 90 é a originalidade com que ela aborda a masculinidade. Sobretudo, como Fernanda Torres elabora as inseguranças universais dos homens em torno do que automaticamente se espera de cada um. 

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Um provedor familiar, um “imbrochável”, um galã, um apaixonado, um aventureiro, fazem parte de algum desenho que ainda tem tons bem fortes. Essa ironia, essa perspectiva de que os homens não sabem finalizar uma cultura, um comportamento, é encapada por cada personagem e vista pelo seu lado mais ridículo. 

Genial em alguns momentos, Fim mostra uma voz pronta. Fernanda Torres não só banca a tarefa difícil de escrever pra outro gênero, como inventa cinco homens diferentes, mas com zonas cinzentas, com pontos de encontro muito bem definidos. 

Álvaro e Silvio são ótimos exemplos. Irônico e ardiloso, o primeiro é um observador, um espião que não se moveu durante a vida inteira. Sílvio é desbocado, obsceno, impulsivo e repulsivo. E a escritora escapa dos clichês possíveis com uma narrativa muito fluida, técnicas versáteis e capaz de projetar os personagens para fora do livro. Você vê os ombros curvados de Álvaro e escuta a risada espalhafatosa de Sílvio sem que ela inclua esses elementos no texto. 

A morte é o tema que une os protagonistas em Fim. Todos eles vão conhecê-la. O que Fernanda Torres faz muito bem é criar uma espécie de O Sétimo Selo às avessas. No filme de Ingmar Bergman, um homem joga xadrez com a Morte. No livro, Fernanda Torres faz os personagens se cansarem do jogo, atirarem as peças no chão, e botarem uma garrafa de cerveja em cima do tabuleiro. 

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Fernanda Torres

Engraçado, original e vigoroso em muitos momentos, Fim é quase um livro de contos disfarçados, já que a autora descreve inúmeros outros personagens em capítulos distintos. A técnica pode evitar um aprofundamento dos mesmos, é verdade, mas colabora para misturar o tempo do livro com o tempo da vida. 

Joan Didion, escritora americana que faleceu no finalzinho de 2021, fez uma obra importante no jornalismo literário. O Ano do Pensamento Mágico (Nova fronteira, 218 páginas), é seu relato sobre o ano de 2003, quando a filha sofreu um acidente e o marido morreu infartado cinco dias depois. 

Sem um pingo de didatismo ou de autoajuda cafona, Joan Didion traça uma observação profunda sobre o luto. 

Sem respostas concretas sobre o que acontece depois da morte, os vivos ficam do lado de cá convivendo com um estímulo dúbio: a vida continua. Tá, continua. Mas de que forma?

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Joan Didion

Depois que alguém que você amou por 40 anos morreu, a vida continua. Pra quê? Joan enfrenta o lapso temporal entre o momento da perda e o da consciência de que a vida não acabou, com maestria. São reflexões sociais, intelectuais, criativas e, ao seu modo, espirituais sobre a confusão que traz essa frase.

O fim não é outro começo. E nem deveria. Para Joan Didion, essa visão corriqueira e rasteira não apara a dor, tampouco inflama o futuro. A vida continuar é uma espécie de provação. É lindo o trecho onde Joan diz que a passagem do tempo descola a memória do marido do seu cotidiano. Ao viver 2004 como um reflexo de 2003, a autora se dá conta de que “a loucura está diminuindo, mas não vejo nenhuma beleza no lugar dela”. 

Fernanda Torres também encerra o livro com uma cena dramática e voltada à memória. Ao contrário de Joan, ela encontra a beleza.

Relato pessoal e ficção, morte e enfrentamento, fluxo de consciência e reflexão, diferem a abordagem das duas obras. Mas, ao olharem para a morte não como um oposto à vida, caso lidas em sequência, como eu fiz,  Fernanda Torres e Joan Didion escrevem livros complementares. 

O que é provisório e o que é eterno? Não é esta definição que baliza a morte e a vida. Antes de tudo acabar, a certeza é também misteriosa: a viagem vai acontecer. Mas, “o trem que chega é o mesmo trem da partida”.

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