Espetáculos para ver: Tom na Fazenda

Com cenário e direção geniais, a peça está em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo.

Elegantemente vestindo preto, calçado com um mocassim branquíssimo, Tom (Armando Babaioff) chega à fazenda onde seu marido, agora morto, será velado. A sogra (Soraya Ravenle) não sabe quem ele é. Esperava por Hellen, a namorada do filho. O cunhado, Francis (Gustavo Rodrigues), pega Tom pela goela e impõe a dinâmica dos próximos dias: vai manter a mentira para mãe, dizer algumas palavras bonitas no funeral e voltar à cidade. 

Os muitos símbolos envolvidos em Tom na Fazenda, em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo, após uma prodigiosa temporada na Europa, inflamam a aparente simplicidade da sinopse com um inferno coletivo. A mentira tem que ser mantida. O silêncio tem de ser regado. A violência, contida. 

O genial cenário criado por Aurora dos Campos dispensa móveis típicos. É um lugar onde não se descansa, se senta. Uma lona preta cobre o tablado e terra vermelha é espalhada na superfície. Baldes d’água completam a cenografia. 

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Imagem: Divulgação/Tom Na Fazenda

Ao longo do espetáculo, os personagens derrubam os baldes na terra criando uma lama grudenta. É impossível se mover no cenário sem se sujar ou fazer barulho. Essa é a forma que a direção de Rodrigo Portella encontrou para texturizar a mentira, o íntimo, e esmorecer a sujeira que insistentemente tem de ser escondida. 

Sem móveis, o palco vira arena. Tom apanha de Francis várias vezes. Tem os pulsos machucados, fica de cabeça pra baixo, crucificado. Uma dessas lutas é tão violenta, tão impactante, com o barro vazando do palco em direção à plateia, que joga o espectador para uma posição de testemunha super incômoda. 

O choque entre os personagens é constante. Tom é publicitário, homem moderno, que trabalha, em alguma medida, com a venda de ilusões. Francis é truculento, limitado, braçal. O silêncio, a incapacidade de falar sobre os próprios sentimentos, um padrão masculino que independe da orientação sexual, é mais do que um ponto em comum entre os dois homens. É o lugar onde eles resistem. 

Todo o elenco se destaca. Mas o trabalho de Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues é impressionante. A luz reforça a aridez do lugar enquanto desenha seus corpos comuns, fortes, não padronizados, ressaltando a brutalidade e a masculinidade do contato. Eles passam quase o tempo todo da peça completamente sujos. 

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Imagem: Divulgação/Victor Novaes

Me lembrei de Benedict Cumberbatch em Ataque dos Cães, o filmaço da Jane Campion, com temas comuns ao espetáculo, onde seu personagem fede como um animal justamente para manter as outras pessoas longe dele. 

O texto de Tom na Fazenda é do canadense Michel Marc Bouchard. A versão brasileira não é só uma adaptação. A violência, o silêncio, a homofobia e a religiosidade fundamentam a nossa cultura. 

Quando esses elementos entram em choque, o que a gente tem é um reflexo quebrado. E até dá pra ir mais longe. O conceito da cordialidade brasileira criado por Sérgio Buarque de Holanda, que derruba a importância dos ritos em nome de uma aproximação familiar, faz de nós pessoas que agem muito mais pela emoção. Gritamos mais. Choramos mais. Batemos, sofremos, violentamos mais. Não suportamos a individualidade. Precisamos viver nos outros, fazer uma apropriação afetiva pra atingir interesses. É um desenvolvimento civil ligado aos processos totalitaristas e de dominação da nossa história. E a terra, para Buarque de Holanda, é uma herança rural. Em cena, os personagens estão impulsivos, irracionais, soterrados por essa trajetória histórica. 

Tom passa nove dias na fazenda. Ele precisa do reconhecimento, de voltar ao pó, ao barro, e ser refeito homem a partir desta vivência. Até se afeiçoou às vacas. Em uma das cenas mais impactantes, ele ajuda Francis no parto de um bezerro. O animal quebra a pata no ato. 

Pra mim, o texto de Michel Marc Bouchard, potencializado pela tradução do próprio Armando Babaioff, brinca com outro clássico do teatro, Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. 

Personagens dizimados por segredos, desejos incompletos, que beiram à transgressão moral ou moralista, incapazes de conviver com a verdade, que aceitam a realidade paralela como instância. Blanche DuBois é Tom. Por que não? E Tom está entre milhares de jovens homossexuais obrigados a inverter o amor em desconfiança, a paixão pela doença, o afeto em febre para sobreviver; a se matarem em nome da mentira. Dilacerados, aceitam até a indecência ingênua. 

A sogra de Tom é esta personagem protegida. Por borrar os limites entre bem e mal, fugir da polarização, é muito rico ver que ela também não é corajosa o suficiente para enfrentar a verdade. 

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Imagem: Divulgação/Tom Na Fazenda

São constantes as cenas onde ela e Francis lavam as mãos nos baldes num simbolismo doído de que não querem se envolver com aquela sujeira. Mais pernicioso ainda é ver como Francis e Tom se espelham, como o viúvo passa a imitar o cunhado, talvez na vontade de ser um animal como ele é. 

“Por que Tom não foi embora após o funeral?”, “O quanto a mãe descobriu sobre a sexualidade do filho?”, e “Porque Tom se vinga de Francis e rasga a boca dele, assumindo seu lugar na fazenda?” são perguntas sem resposta fácil.  

Se ao final, quando o pântano movediço por onde os personagens de Tom na Fazenda se digladiaram se converte em um tipo de Terra Prometida, invertendo até mesmo a lógica religiosa, moral, e liberando Tom e a sogra da opressão de Francis, a única resposta que aguenta o tranco é tão violenta quanto as perguntas. 

A dor, a miséria, a mentira, a masculinidade violenta continuam. 

Ninguém vai dizer quando parar. 

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