O doloroso retrato de não se saber quem é

Em “Meu Pai”, Anthony Hopkins interpreta com delicadeza a degradação de um homem com demência.

Em “Meu Pai”, logo depois de um diálogo banal onde a filha Anne (Olivia Colman) diz que se mudará para Paris, vemos o octagenário Anthony (Anthony Hopkins) não reconhecer mais o rosto dela. 

O espectador também fica confuso. A atriz que agora interpreta Anne é Olivia Williams. Esse é o primeiro sinal do quão sensível, profunda e milimetricamente planejada é a direção do novato Florian Zeller. 

A brincadeira não fica só na mudança de atores, mas passa por um belo design de produção. As portas onde Anthony costuma entrar e sair mudam de lugar. Não sabemos se ele está na própria casa ou na da filha. Nem mesmo temos alguma certeza sobre o que está sendo contado. 

De uma coisa, contudo, o espectador não sai ileso: de sentir na pele como é viver com demência. 

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O esfacelamento da memória, dos lugares comuns, de rotinas simples, como fazer o próprio chá, tomam uma medida assustadora em “Meu Pai”. A normalidade é um choque diário. 

Labiríntico, “Meu Pai” poderia ser uma confusão. Mas, a montagem do filme é tão precisa, tão sutil, que consegue o feito de deixar o espectador confuso, nunca perdido. Nós, ao contrário de Anthony, vemos sua dor e sofrer também pelos olhos da filha, Anne. E este fio condutor é importantíssimo para colocar a história entre esses dois polos: o da distensão e tensão. 

Dobrar o sofrimento sem que ele seja piegas, mas extremamente empático é uma tarefa do ótimo roteiro de Christopher Hampton, também indicado ao Oscar deste ano. Complementar à direção, o texto inócua em Anne um sinceridade e crueldade que nos torna cúmplices da degradação humana pelo qual Anthony está passando. 

Todas essas qualidades técnicas estão em redor da interpretação magnífica de Anthony Hopkins. Ele merece todos os prêmios possíveis, porque livra seu personagem de ser raso, ou mesmo um avatar de vitimismo. O que a gente tem aqui é o oposto disso: Anthony luta contra o próprio corpo nos detalhes mais íntimos, na forma desesperada com que esconde o próprio relógio – de uma simbologia mais provocativa do que se imagina, inclusive. Para Anthony, o tempo não é longo, pois não há uma promessa de futuro. Tampouco ele é bom, pois não sabe que o está perdendo. 

O tempo é uma jaula sem porta de saída. Preso nele, e também a ele, Anthony tampouco consegue se apegar ao homem que foi. A falta de consciência sobre o que está errado com ele não permite sequer um pedido de perdão antes do fim, como muitos de nós costumamos pensar. 

É neste aspecto que “Meu Pai” é tão doloroso e ao mesmo tempo tão belo.

Onde assistir: Now, Apple TV.  

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