Discos para ouvir: “Passado, Presente e Futuro”, de Sá, Rodrix & Guarabyra

Os inventores do “rock rural” brasileiro merecem o play.

Lá por 1972, um trio de músicos brasileiros chamado Sá, Rodrix & Guarabyra, deram um sobrenome para o rock: rural. O Rock Rural nasceu bem no meio do movimento antropofágico, o mesmo que também foi a chama pra Caetano, Gil, Gal, Tom Zé e os Mutantes atearem fogo no tropicalismo. O rock rural parecia menos ambicioso. 

Quem explica é um dos inventores do negócio, o músico Guarabyra. “Embora rock seja sinônimo de um ritmo específico, a expressão rock rural é mais um conceito. Uma valsa pode ser chamada de rock rural, gravamos várias em nossos discos. É a forma como se trata alguns temas, quase uma crônica. Damos nomes às paisagens, descrevemos personagens. Tudo num espírito viajante.” O papo tá num artigo da Folha de S.Paulo, em edição de 2007. 

Sá Rodrix Guarabyra.
Sá, Rodrix & Guarabyra

“Passado, presente e futuro”, o primeiro disco lançado pelo trio, não é nem um resumo dessa filosofia, mas um universo expandido. 

Logo na abertura, com referências ao Conde Ferdinando, o herdeiro da coroa do império Austro-Húngaro, e ao pioneiro dos dirigíveis, Ferdinand von Zeppelin, a deliciosa “Zepelim” joga o público para dentro de alguma cena de 1910, ali pertinho de estourar a Primeira Guerra Mundial. “Hoje abri um livro antigo que mostrava as maravilhas inventadas pelo homem”.

O som zombeteiro e muito potente, irônico, burlesco, que poderia ser trilha sonora para alguma apresentação dos teatros de vaudeville, é um ímã para tudo o que vem depois. 

“Ama Teu Vizinho Como A Ti Mesmo” é a genial versão brasileira do mandamento “Ama Teu Próximo Como a Ti Mesmo”. Mas, a guitarra suja faz o oposto do que seria um bom conselho. Me chamou atenção também os metais da música. Se esse vizinho conseguir ter paciência no fim do dia, ele é um campeão. Sai do ringue aclamado. O solo curtinho do sax é a exata trilha desse momento. 

“Juriti Butterfly”, que vem em seguida, poderia muito bem ser uma canção dos Beatles solada pelo John Lennon em Magical Mystery Tour. Por falar neles, os primeiros acordes de 

“Me Faça um Favor” são iguaizinhos aos de “Blackbird”, do Paul McCartney. 

A comparação até pode ser uma saída fácil pra rotular o que Sá, Rodrix & Guarabyra criaram. Só não é muito justa. Embora todo mundo naquela época estivesse com o mesmo dom premonitório de mesclar tudo que já existia em busca de uma identidade nova, o trio brasileiro fez música com muita originalidade. 

Num artigo do Blog do Igor Motta, ele define mais ou menos assim: “enquanto Rodrix ressuscitava o então desprezado acordeão e partia também para a execução de instrumentos vistos como “exóticos”, como cravo, celesta, harpsicórdio, etc., Sá eletrificou e experimentou diferentes afinações na viola caipira de dez cordas, antes esnobada como instrumento menor, e Guarabyra resgatava os sons das barrancas do São Francisco, largamente ignorados por um país que – ancorado no eixo Rio-São Paulo”. 

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Deu pra entender, né? O folk serviu como base e o sertanejo brasileiro veio pra dar cor, mas o rock – até então o som universal da oposição ao sistema – nunca saiu da mira de Sá, Rodrix & Guarabyra. 

Tanto é que a melhor música de “Passado, Presente, Futuro”, pelo menos pra mim, é “Hoje ainda é dia de rock”. 

Os caras vão fundo no modo interiorano de falar: 
“Eu tô doidin por uma viola Mãe e pai, de doze cordas e quatro cristais. Pra eu poder tocar lá na cidade Mãe e pai, esse meu blues de Minas Gerais.” 

Cheia de texturas, com uma guitarra sem firula e intensa na medida, a música não teria definição melhor: é um blues de Minas Gerais mesmo. 

Ou esse verso aqui te diz o contrário? 

“Eu descobri olhando o milho verde, mãe e pai que hoje ainda é dia de rock”. 

“Primeira Canção de Estrada” é o símbolo desse modo nômade que eles tanto quiseram internalizar; desse olhar viajante que não perde a simplicidade tampouco o espanto com o passar da vida. 

Não que uma coisa tenha a ver com a outra, mas é aqui que aparece uma frase que virou modinha de uma penca de músicas sertanejas: no dia em que saí de casa. O trio dispensa o melodrama para injetar no verso seguinte uma boa dose de desesperança: “e não fazem mais de quatro semanas que eu estou na estrada. Mas encontrei tantas pessoas tristes, desaprendendo como conversar”

Parece até que já tinha internet naquela época… 

“Cumpadre Meu”, “Crianças Perdidas” e “Azular”, são canções igualmente poderosas porque enxergam o tempo por dentro do tempo, são emocionantes. A forma como eles brincam com o piano, o violão e o próprio baixo são perfeitos para captar um tipo de saudade que anda cada vez mais rara. 

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Sá & Guarabyra. 

Ainda no artigo da Folha de S.Paulo, o Sá disse que “o que queríamos era misturar a tecnologia que vinha chegando ao país com os dados culturais brasileiros.”

O choque tá muito claro. E em “Crianças Perdidas” eles fazem uma sinfonia com sons de goteira, rãs e violões. Puxando xote, o baião e o coco, todos ligados pelo folk, pelo rock progressivo de gente como Emerson, Lake & Palmer, ou da novidade dos Beatles e as experimentações do próprio tropicalismo, o trio brasileiro não dispensava o que havia de mais original no Brasil. Inclusive, foi influência pra uma fase importante de outra banda que vale muito ser ouvida: O Terço, até hoje a maior banda de rock progressivo do país.

Zé Rodrix já faleceu, mas Sá & Guarabyra continuam na ativa, assim como O Terço. Tomara que a onda de festivais brasileiros, como o Coala, Breve, Rock The Mountain e Coquetel Molotov, lembrem deles para as próximos edições.

As três últimas músicas de “Passado, Presente, Futuro”, “Azular”, “Ouvi Contar” e “Cigarro de Palha” fecham o disco de um jeito mágico.

Num país como o Brasil, o futuro já nasce velho e o presente é só uma miragem. As coisas mudam pra ficarem iguais, e a música tenta antecipar as transformações que tornam o povo tão único. 

“Terra”, que o trio lançou em 1973, antes de passarem mais de 30 anos separados, expande os conceitos criados para o mesmo horizonte: o rock rural não é música sertaneja. E o interior do Brasil tem muito mais riquezas do que as minas sangrentas de Minas Gerais podem mostrar. 

Escute a genial música “Mestre Jonas”.
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