Livros para descobrir: Ninguém quis ver, de Bruna Mitrano

O ótimo livro se destaca pela concisão, criatividade e sentimento.

Aquilo que ninguém quis ver, Bruna Mitrano, em seu segundo livro de poesias, joga na cara. Mas Ninguém quis ver (Companhia das Letras, 92 páginas), não parece ser escrito como confissão ou acusação, ainda que a escritora use retalhos da própria lembrança para compor seu painel, como no desesperador 1989, um de seus poemas mais fortes. 

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Sutil, paciente, mas não amansada, Bruna interage com seu leitor largando-o neste universo escondido, isolado dos grandes centros, das grandes preocupações humanitárias, políticas e sociais. Seu modo de guiar tampouco é carinhoso. Bruna escreve desacreditada das concessões. 

A fome, o assédio, a dor e as perdas familiares, por exemplo, não dão lugar à comiseração. É outro tipo de febre provocada pelas suas páginas, um incômodo, uma raiva compartilhada, embora nunca totalmente compreendida. 

Em Estranhos, outro texto poderoso, Bruna Mitrano mostra como a cultura masculina é ameaçadora, como o tal senso de proteção é inexistente, em como os homens bifurcam o tal dever em um tipo de dominação. Esse efeito só é atingido pelo modo como o poema é libertado. 

Ainda que o livro seja dividido em partes chamadas Longe, Coisa de Família, Urubus.etc, Desastres Naturais e Suportar Tudo Isso, o tema principal – a invisibilidade – apenas ganha outras portas. Um exemplo disso é Rotina, que abre a parte intitulada Desastres Naturais. Repare em como a escritora não usa uma estrutura clássica, mas impõem um ritmo, uma direção do olhar para cenas até então sem brilho; em como ela estrutura a situação narrada dentro de uma agonia tantas vezes vista que os personagens já não têm mais força pra repetir. Mesmo assim, a poesia da autora, que nasceu e se criou na periferia do Rio de Janeiro, é um tipo de encenação teatral: a temporada dos problemas segue firme para a plateia.

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Se nos poemas mais longos há uma precisão criativa para se ter uma textura, um ambiente, um lugar onde a alma poética da autora vai nos abandonar, como em Relógios Grandes e Bebê, que arrematam na última estrofe como um soco imprevisível em briga de rua, nas poesias pequenas, a escritora tem a face de um sniper: “A garça na lama ainda é branca”, escreve em A Lição. Um tiro só. E que faz um estrago… porque é essa uma das maiores características de Ninguém Quis Ver, uma concisão que não apela a nada, não está suplicando pela atenção, não é feita para ser bonita e dali uns dias, descolada do contexto, ser transformada em uma frase positiva. Não é um livro positivo, mas não são textos pessimistas. A poesia de Bruna tem uma dubiedade equilibrada para transferir seu relato pessoal para outras vidas e servir como um “livro do futuro”, um tipo de resguardo e resistência aos que virão e tirar vida daquilo que é só estatística. Bruna faz poesia usando uma notícia de jornal em A Vida é assim. O resultado é duríssimo.


Na epígrafe de Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago botou que “se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. É isso o que Bruna vai destruir ao longo do seu ótimo livro. Muitos olham, reparam e ignoram. Por diversas razões. Em terra de cego, importa a quem ter um olho bom?

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