A Publicidade Vai Ao Cinema | A curta distância entre marketing e jornalismo em “Rede de Intrigas”

Um dos maiores clássicos do cinema, o filme é uma sátira mordaz aos meios de comunicação.

“Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Normalmente atribuída ao escritor George Orwell, na verdade a frase foi dita por William Randolph Hearst, um magnata americano dono de um império midiático entre 1900 e 1930. E muitos dizem que ele foi a inspiração de “Cidadão Kane”.

A distância entre jornalismo e publicidade é muito mais ambígua e insidiosa do que Hearst imaginava. E “Rede de Intrigas” (Network, 1976), não busca um atalho para se chegar ao ponto de intersecção entre os dois: o filme é um laudo do perigo de encontrá-lo. 

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Peter Finch é Howard Beale

O âncora da rede UBS, Howard Beale (Peter Finch), é demitido porque seu programa está com baixa audiência. Na despedida, anuncia que irá se matar, ao vivo, na próxima semana. 

O que claramente era pra ser tratado como um ato de insanidade, desencadeia um renascimento profissional: Beale desperta à atenção do público, a audiência sobe, e ele se torna um profeta do caos, fazendo um informativo completamente diferente, que tem até uma vidente de Wall Street no elenco. 

Em uma das muitas cenas emblemáticas do filme, Beale invoca um “gritaço”, com pessoas indo às janelas despejar seu bordão “eu não aguento mais”. 

Onde a maioria vê uma porta fechada, a executiva, Diana Christensen (Faye Dunaway), enxerga muitas janelas para reverter não só a baixa audiência do canal, como aumentar os lucros. 

Suas ideias são uma mistura sem freio entre o absurdo, o grotesco, o violento e o sensacionalista. 

A receita dá certo. Em dado momento, ela se encontra com uma militante de ultra-esquerda para criarem um show juntas, o “A Hora Mao Tsé-Tung”. 

O diálogo do encontro, inclusive, é impagável: 

– Olá, eu sou Diana Cristensen, uma racista escravizadora do circo do Tio Sam. 

– E eu sou Laura Hobbs, uma negra suja e comunista.

– Isso pode render uma ótima parceria! 

“Rede de Intrigas” não debate a ética jornalística, tampouco o esmerilho publicitário. É o sistema financeiro quem manda nos dois. Submissos, jornalismo e publicidade tem um teto moral muito baixo. 

LUMET
Sidney Lumet, um dos maiores diretores do cinema.

O diretor, Sidney Lumet, trabalha a dualidade moral em praticamente todos os seus filmes. De “12 homens e uma sentença” à “Serpico”, de “Um dia de cão”, passando por “O Veredito” e até no último trabalho antes de falecer, “Antes que o diabo saiba que você está morto”. Ele tem uma visão mordaz sobre como a moralidade é um subproduto humano usado para manejar estruturas de poder e dominação.

A espetacular direção do filme trabalha as ambiguidades sem que elas pareçam caricatas – ainda que “Rede de Intrigas” seja uma sátira – tudo é assustadoramente possível. Ele faz um filme gritado, exagerado, que infecta o próprio formato sensacionalista para texturizar o universo retratado. Mais do que isso, Lumet tira do sulco pop da época uma imponência cultural atemporal.

“Taxi Driver” é do mesmo ano. E não deixa de ser um filme complementar à proposta de Lumet, já que mostra como o fanatismo, o fascismo e a dominação americana enchafurdaram a população em um lixo existencial e cotidiano. Beale e Travis são homens comuns, dominados pela força do sistema social, mas que se rebelam e se alimentam dele na mesma medida. 

No melhor momento do filme, o dono do conglomerado, Arthur Jensen (Ned Beatty, espetacular), explica para Beale o que é o meio onde ele vive: “não existem nações. Existe Esso, DuPoint, IBM. Elas são as nações do mundo”. 

O poderoso discurso de Arthur Jensen

Se esse é o tema principal, as outras camadas do genial roteiro de Paddy Chayefsky se espalham em formatos diferentes: a incomunicabilidade entre o ex-diretor, Max Schumacher (William Holden) e Diana; a ambição desmedida dela; a tensão social dos americanos que aceitam profecias vindas de um louco e, sobretudo, à mediocridade da sociedade como um todo. Os conceitos de capitalismo tardio – a saturação da produção e a automatização do trabalho humano – são incluídos na narrativa de maneira natural. O conteúdo sensacionalista é o reflexo disso: o grotesco é combustível do lucro, porque é um imã de audiência. E quanto mais as pessoas veem, mais dinheiro se ganha.

“3% de vocês leem livros, 15% leem jornais. A metade da população já não conhece nada que não saia desse tubo (a televisão)”, diz Beale em um dos episódios do show. 

Não mudou muito. Se a gente trocar televisão por internet, o que se tem é uma sociedade que evolui de maneira desorganizada, empurrando a si mesma para a própria morte. A rede do título ainda está bem esticada.

Essa é a sentença final. É o fio que separa verdade e mentira, fakenews e valores morais. O poder e o dinheiro são as ideologias mais fervorosas do mundo. Quando os agentes econômicos se reorganizam pra impedir a completa derrocada de Beale e da própria empresa, a constatação de “Rede de Intrigas” é amarga: “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique.” Mas, dependendo de quem é o chefe, isso é pura publicidade. E boa.

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