Projeções realistas em distopias futuristas

O utópico felizes para sempre dos contos de fadas e filmes da Disney pode dar a um público o sonho de um futuro reluzente e feliz; mas, convenhamos, as distopias futuristas tem um poder muito maior de mexer com nossa imaginação e nos projetarem em um estado de caos e destruição ou, ao menos, a um ‘novo normal’ que nos faz questionar que rumo a sociedade tomou para chegar a tal ponto.

O utópico felizes para sempre dos contos de fadas e filmes da Disney pode dar a um público o sonho de um futuro reluzente e feliz; mas, convenhamos, as distopias futuristas tem um poder muito maior de mexer com nossa imaginação e nos projetarem em um estado de caos e destruição ou, ao menos, a um ‘novo normal’ que nos faz questionar que rumo a sociedade tomou para chegar a tal ponto.

Distopias narrativas – cujo termo teve origem em 1868, pelo filósofo e economista britânico John Stuart Mill – são as histórias (filmes, livros, jogos) que, em resumo, projetam uma sociedade ‘pior’ do que a que temos hoje, um cenário de opressão ou desespero, geralmente causado pela popularização de tendências comportamentais e/ou (mais recentemente) tecnológicas que têm, como consequência, minar valores primordiais da sociedade, como a liberdade, a democracia, a equidade social ou o acesso a itens essenciais como ar, água e alimento. Não por acaso, apelam à emoção mais visceral de medo e a inquietude quanto à probabilidade que a distopia futurista seja mais contemporânea do que pensemos.

Elas nos provocam a refletir sobre dilemas morais que acreditamos estarem distantes (ou simplesmente inexistem); e esta própria ignorância e descaso sobre o percurso que resultou no cenário distópico é o fator primordial para concretizar a destruição das bases da civilização.


O foco, aqui, não é a comum dicotomia Opressor x Oprimido, tema recorrente em algumas histórias distópicas, com a ascensão de um governo/governante tirânico que impõe à sociedade suas regras (de 1984 à Jogos Vorazes). Para além destes enredos simplificados, podemos imergir mentalmente na construção da representação do novo mundo (ou, do mundo futuro); em que não há necessariamente a busca pelo retorno a uma situação pré-opressora ou à sobrevivência neste contexto, mas à batalha cotidiana naturalizada pelo (novo) funcionamento do universo ficcional.

Muitos filmes, livros e games buscaram extrapolar a consequência de comportamentos contemporâneos na construção de distopias. O pós-apocalíptico, entretanto, pode ser tratado considerando-se um evento cataclísmico pontual (e transformador da sociedade) ou uma evolução de uma tendência comportamental/tecnológica.

Em Mad Max, a violência eclode da luta por combustível fóssil após um desastre nuclear; Waterworld (ok, desconsideremos o enredo) reflete um mundo tomado pelas águas na projeção de uma catástrofe ambiental (derretimentos das calotas polares).

O pós-apocalíptico pontual é uma ótima fonte para a ficção científica e social, mas ausência de um evento específico, pontual, deveria incomodar de forma mais contundente, já que a probabilidade de uma involução dos valores sociais de forma gradual, embora menos impactante em termos de narrativa, seria mais crível, já que temos referências históricas (reais) ilustrando transformações na sociedade, seja a expansão colonialista, a ascensão de regimes autocráticos, a divisão geopolítica do mundo ou críticas a modelos econômicos e sociais.

Em narrativas ficcionais, o universo destas histórias, quando bem construído, têm uma importância tão ou maior que o próprio enredo. Temos contato com ambientes inóspitos, aceitos, contudo, como cotidianos. E a naturalidade com a qual situações disfóricas são aceitas pelos personagens é o que nos deixaria inquietos, já que toda narrativa é, por natureza, um processo egóico e projetivo, ou seja, o público, de alguma maneira, tende a se colocar na história para que a relação empática com os eventos e personagens seja mais forte.

Porém, se estas distopias têm como objetivo que acordemos para questões que, sendo ignoradas, podem trazer consequências destrutivas, coloco que isto é possível apenas quando esta projeção de futuro puder ser reconhecida como uma realidade futurista e não como uma ficção científica irrealizável ou pouco provável.

O incômodo das narrativas distópicas está justamente na credibilidade de que aquele futuro poderá ser, um dia, nosso presente. E, para tal, as histórias deveriam buscar contar as etapas críveis que levaram o mundo àquela situação.

Assim, narrativas distópicas – incluam aí, além dos clássicos “Admirável Mundo Novo”, “1984” e “Farenheit 451”, os mais hollywoodianos “Matrix”, “Onde está segunda?” e mesmo a maior parte dos episódios de “Black Mirror” – existem justamente sobre a projeção de um universo realista, quer dizer, a extrapolação da tendência destrutiva é algo que deve ser visto como crível, tomando elementos que já vemos refletidos, de forma tímida ou incipiente na sociedade. É como se a audiência olhasse todo o dia para uma semente (e apenas para a semente) e as narrativas ficcionais mostrassem a árvore que ela se tornará. As histórias buscariam um início de disrupção de valores e os elevaria à enésima potência.

Observarmos o sistema de pontos do episódio Nosedive de Black Mirror é mais incômodo que a destruição robótica do Exterminador do Futuro, pois conseguimos, no momento presente, enxergar um simulacro do tema na busca incansável de likes e followers e na corrompida definição de “influenciador” como um ser com alto alcance.

Neste aspecto, é interessante observar, por exemplo, como a série Years & Years, da HBO toma as tendências comportamentais e tecnológicas de cada pulo temporal de seus capítulos e as catalisa, projetando a naturalidade anos à frente e conduzindo quem a assiste a uma acelerada relação entre incômodo e conformidade. A onipresença de assistentes pessoais ou a analogia do transumanismo com a atual discussão sobre gênero e sexualidade têm como objetivo encontrar paralelos no mundo atual para que tais discussões sejam vistas não como uma ficção, mas como uma antecipação de conflitos sociais (e psicológicos) que ocorrerão mais cedo ou mais tarde.

YEARS & YEARS TRANSUMANISMO

Da mesma maneira, o episódio “Be right back”, de Black Mirror, poderia ser inicialmente equiparado à funcionalidade da “Voz da avó morta” (como está sendo popularmente chamada a capacidade da Alexa narrar livros com vozes emuladas (claro, não estou discutindo aqui a natureza técnica destes exemplos, apenas a percepção leiga de seu funcionamento).


Assim, a construção de um universo distópico nas narrativas tem como início o reconhecimento de um fenômeno social, com origens nas próprias relações humanas ou em aspectos da sociedade, como a tecnologia, e na representação exagerada deste fenômeno com viés negativo, no melhor estilo “se este comportamento ou tecnologia estivessem amplamente disponíveis e incrustados em nosso dia a dia, o que de ruim poderia trazer?”.

Não se trata de ter uma visão positiva ou negativa, mas em antecipar consequências que utópicos e idealistas podem ignorar em prol da mudança, algo que, por si, não é boa ou ruim. Em sendo o mundo feito por humanos, nem todos capazes de vislumbrar o impacto de seus comportamentos e do uso da tecnologia, identificar potenciais desvios, no mínimo, gera a reflexão necessária para impedir que uma distopia ficcional se torne uma predecessora de um documentário.

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