Inteligência Artificial e o mercado de trabalho

Como retrospectiva, sugiro a leitura dos textos anteriores sobre o assunto. O primeiro, a respeito do “Estudo de 100 anos para a Inteligência Artificial”; o segundo, referente à definição do que é IA; e o terceiro, abordando as tendências. Pretendo dedicar este e o próximo à análise do impacto em duas áreas de grande interesse: o emprego e ambiente de trabalho e a educação.

O mercado de trabalho tem sido historicamente influenciado pela Inteligência Artificial via tecnologias digitais que permitem a criação de rotinas ou automação de tarefas como planejamento de utilização de recursos, sistemas de informação e análise para supply chain, CRM ou knowledge management systems, dentre outros. Por conta deste enfoque em rotina, trabalhos de nível médio têm sido mais impactados do que os de nível alto e baixo. Vale lembrar que estes “níveis” se referem à habilidade necessária para realizar uma tarefa, que por sua vez, se reflete em nível de escolaridade. Um bom modo de visualizar esta realidade é pelos gráficos publicados pelo The New York Times em 2014, mostrando como a recessão havia impactado a economia e modificado o mercado de trabalho (são 255 gráficos interativos que dão um panorama bem abrangente e que podem ser acessados por este link).

Como comentei no primeiro texto desta série, acredita-se que IA possa aumentar o escopo do que é considerado tarefa de rotina. Um exemplo neste sentido nos é dado pelos pesquisadores Dana Remus (University of North Carolina) e Frank S. Levy (M.I.T.), no artigo acadêmico “Can Robots Be Lawyers? Computers, Lawyers, and the Practice of Law”. Como já se intui pelo título, trata-se do impacto atual de IA na automação de algumas práticas jurídico-legais, como a permitida por algoritmos que fazem extração de informações de processos jurídicos e topic modeling – é o termo usado para a tarefa de descobrir e registrar uma grande quantidade de arquivos e documentos com base em informações temáticas pré-definidas – vale dizer que é feito através de métodos estatísticos que analisam as palavras dos textos originais para descobrir seus temas, como estes temas estão ligados uns aos outros e como eles mudam ao longo do tempo. Isto tem influenciado o tipo de trabalho feito por advogados recém-formados nos EUA, que anteriormente começavam as suas carreiras fazendo, guardadas as devidas proporções, o que estes algoritmos fazem hoje.

Também é esperado que IA possa influenciar no tamanho e na localização da força de trabalho. Muitas organizações são grandes porque precisam realizar funções que são escalonáveis apenas pela adição de recursos humanos – seja “horizontalmente” em mais áreas geográficas, seja “verticalmente” em níveis hierárquicos. Ao realizar mais funções, a Inteligência Artificial muda a definição do que significa escalonar, não a relacionando mais a aumento de “tamanho”. Mas nem tudo é ameaça, IA também deverá criar postos de trabalho, especialmente em setores que necessitam de propriedade intelectual, fazendo com que certas tarefas fiquem mais importantes e criando novas categorias de emprego ao permitir novos modos de interação.

Sistemas de informação cada vez mais sofisticados (sobre o assunto recomendo muito o livro de Laudon & Laudon, “Management Information Systems”, já na sua 13ª edição) têm sido usados para criar novos mercados e reduzir barreiras de entrada, permitindo o surgimento de apps como Airbnb e TaskRabbit, por exemplo. Uma comunidade crescente de pesquisadores tem se dedicado exclusivamente a estudar como se pode usar a IA na criação de novos mercados e em como fazer os mercados atuais operarem de maneira mais eficiente, levando a crer que a sua influência, muitas vezes disruptiva, está apenas no seu início.

Apesar da IA poder reduzir o valor de bens de consumo e serviços (ao realizar tarefas que necessariamente demandariam um ser-humano) e desta forma contribuir para o aumento da capacidade de consumo individual, é inegável que a possível redução de vagas de trabalho levanta mais preocupação do que os ganhos econômicos difusos. Com isso, IA acaba sendo “culpada” mais por ameaçar o emprego do que bem vista pela sua capacidade de melhorar a qualidade de vida.

É verdade, porém, que gradualmente o avanço na inteligência de máquinas irá permiti-las “invadir” a maioria dos mercados de trabalho, exigindo uma mudança no tipo de atividade realizada por humanos e que os computadores serão capazes de assumir. Acredita-se que os efeitos econômicos da IA sobre os chamados empregos humanos cognitivos (aqueles considerados anteriormente na era industrial como “trabalho de escritório”) será análogo aos efeitos da automação e robótica no trabalho de fabricação industrial, em que operários acabaram perdendo empregos mesmo possuindo conhecimentos técnicos, muitas vezes especializados, perda esta que impactou negativamente em seu status social e na sua capacidade de prover para suas famílias. Com a mão-de-obra se tornando um fator menos importante na produção em comparação ao capital intelectual e à capacidade de usá-lo para gerar valor, é possível que a maioria dos cidadãos possa ter dificuldades em encontrar um trabalho que pague bem suficientemente para manter um padrão socialmente aceitável de vida.

Esta é uma possibilidade real e influencia, dentre outras coisas, em curto prazo, na forma como o nosso sistema educacional se organiza. Educação, treinamento e criação ou readequação de bens e serviços que necessitem mais de intervenção humana podem ajudar a mitigar efeitos econômicos negativos. De qualquer forma, é imprescindível que comecemos a nos atentar às competências necessárias para o trabalho do século XXI e adequar nosso sistema educacional para formar cidadãos mais capacitados dentro de uma realidade diferente da industrial (quem se interessar mais sobre o assunto, ano passado publiquei 3 textos sobre o tema, que disponibilizo neste link).

Em longo prazo, será preciso rever a rede de segurança social atual e evoluí-la para atender um possível contingente maior de pessoas e ajudá-las a se reintegrarem em uma sociedade mais intelectual do que manual. Países como a Suíça e a Finlândia já começaram a considerar ativamente esta nova realidade e iniciaram um processo de adequação de suas sociedades – que começou, de maneira não surpreendente – pela reformulação de seus sistemas educacionais, privilegiando o desenvolvimento da habilidade de metacognição, domínio de idiomas (em especial da língua inglesa, pelo fato da maior parte do conhecimento humano estar registrado neste idioma) e um currículo baseado em STEM (acrônimo em inglês para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) associado ao “método” grego de “arte liberal” (quem quiser mais detalhes do conceito, disponibilizo um link de outro texto que escrevi sobre o tema) por se entender que é uma maneira eficiente de adequar a forma de pensar para uma mentalidade mais direcionada à criação de propriedade intelectual, em que se destaca a conexão de conhecimentos – de forma mais abrangente – e a imaginação – para atuar criativamente na sociedade e gerar inovação.

Aqui vale uma explicação adicional, pois o tema gera bastante interpretação equivocada. Foco em STEM não é a mesma coisa que foco em ciências exatas (e menos ainda, não foco em ciências humanas). É consenso, ao menos no caso da matemática, que a matéria ensinada na maioria das escolas é um reflexo pálido da matemática que verdadeiramente apaixona (aquela que, parafraseando Michael Atiyah, identifica e lida com problemas que são ao mesmo tempo interessantes e solucionáveis). No decorrer da revolução industrial nos esquecemos de que matemática também é arte – e não me refiro à geometria, como aqueles cujo coração se agita com a visão dos fractais pode supor inicialmente – me refiro à emoção que a matemática evoca. A satisfação de transformar o desconhecido em conhecido é imensa e também profundamente inata à “disciplina” em questão. A triste ironia da política de educação em relação à matemática é que na tentativa de aproveitar o nosso potencial humano para o raciocínio e resolução de problemas – habilidades vitais para o futuro da nossa economia – os formuladores de políticas públicas (assim como os formadores de opinião) negligenciam a mais importante de todas as verdades matemáticas: ela também é arte e deve ser tratada como tal.

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