“Marriage Story”, uma última dança para o final de um amor

– Nós precisamos conversar.
– Tudo bem.
(Silêncio)
– Eu não sei como começar.

O novo filme de Noah Baumbach, “Marriage Story” (História de um Casamento, 2019), não é tanto uma história de casamento, mas uma história de histórias – das histórias que são contadas sobre um casamento à medida que definha e morre, o papel dessas histórias na vida daqueles que serão ex e, acima de tudo, as estruturas que dão origem a essas histórias e provam ser inseparáveis de sua substância. A força principal de Baumbach como diretor é sua visão de “falar” durante uma cena de momento, durante a ação. “Marriage Story” é seu filme mais forte, porque transforma a própria base dessa conversa em uma parte crucial da ação – e vai em direções surpreendentes para revelar a importância pessoal dessa conversa e o alto preço (literal e emocionalmente) seus protagonistas pagam para libertá-lo.

O filme começa com um ardil elegante: um par de monólogos de dublagem de seu casal, Charlie Barber (Adam Driver) e Nicole Ryder Barber (Scarlett Johansson). Os monólogos detalham o que cada um ama do outro: Charlie cita a compreensão emocional de Nicole, comprometimento familiar, ampla gama de habilidades, intensidade pessoal, dedicação total ao filho Henry (Azhy Robertson). Nicole fala da auto-suficiência de Charlie, sua avidez, sua ordem, devoção paterna, força como um homem “self-made” que ‘veio’ para Nova York de uma família problemática e fez do teatro – uma empresa que ele fundou – sua casa.

Esses discursos provam rapidamente que são, na verdade, cartas nunca enviadas, faladas apenas internamente pelos dois personagens. Nicole e Charlie os escreveram por recomendação de um mediador da separação, para lê-los em voz alta em uma sessão em seu escritório. 

Cena. Quando o mediador (Robert Smigel) pede que eles comecem, Nicole interrompe o processo, recusando-se a ler sua escrita ou sequer ouvir Charlie lendo a dele. A recusa de Nicole sugere a fragilidade de seu estado de espírito – o risco de que, ao reafirmar o vínculo desgastado do casal, ela perca o poder de cortá-lo. De fato, o filme inteiro é um dos monólogos de duelo, falados e não falados: duas horas de conversa nítida, dolorosa, espirituosa e elegante, que, no entanto, está enraizada na impossibilidade de comunicação. Baumbach apresenta a natureza ilusória do amor, a centelha inefável em seu âmago e o domínio dos aspectos práticos pelos quais é definido e realizado. Ele testemunha a frase de Pierre Reverdy que ficou famosa por Jean Cocteau: “Não existe amor, existe apenas uma prova de amor“.

Embora não fique claro por que o casal está se divorciando, o filme tenta balancear as visões dos relacionamentos desta geração e, acredito que sem intenção, as audiências vão enxergar que a insatisfação de Nicole está dirigindo o processo – Te garanto, após assistir o filme e pensar em cada cena, não é o caso. O filme exige ler nas entrelinhas.

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Já passamos por aqui antes, e cada vez em uma época diferente. Relembrando “Kramer vs. Kramer(1979), que aborda a mesma situação, mas pela época fez com que a personagem de Meryl Streep fosse o ímpeto da separação, em uma época onde se espera que mulheres fossem apoios do seu homem, aqui o personagem de Dustin Hoffman, por toda vida. Avançamos para 1999 com um filme mais leve – com tom cômico e esperançoso -, “The Story of Us“, que nos leva em uma jornada pelo casamento dos personagens de Michelle Pfeiffer e Bruce Willis, em um cenário de mudanças na sociedade, mas que não permite ser uma obra de arte porque o filme é injusto ao modo que termina, eles ficam juntos. É fato que o personagens de Willis é o responsável pelo desgaste do casamento, levando o personagem a amargura, mas de alguma maneira – sem mudar qualquer aspecto – faz com que a personagem de Pfeiffer repense em tentar continuar o casamento, e de modo cruel, pesando a questão dos filhos no relacionamento, com um monólogo final que pesa a mão no assunto “família” e não dos sentimentos dos indivíduos – e sequer do casal.

Estamos em 2019, e finalmente temos um filme à altura dos filmes que estão na história e fazendo jus a evolução da sociedade, mais próximo do mundo real, para as nuances, para as complicações, paras os indivíduos que se conheceram, ficaram juntos e por algum motivo não deram certo. Nosso instinto é questionar um ou outro lado com anedotas fáceis do dia a dia, com frases prontas remetidas ao personagem ou gênero, sem em algum momento fazer a pergunta chave que o filme nos exige, de modo leve – e após relembrar, quase gritante e angustiante em como está em nuances.

– Nós precisamos conversar.
– Tudo bem.
(Silêncio)
– Eu não sei como começar.

Baumbach oferece, ao longo do filme, um conjunto de nuances comportamentais de humor caloroso – e nitidamente cômico – e recortes de diálogo, uma rede finamente elaborada de relacionamentos familiares e conexões de trabalho. Ele mostra as vaidades e incertezas, as gentilezas e os erros que evocam o sentido de uma vida plena e complexa. No entanto, essa textura complexa também é frágil e diáfana, revelando em ação as estruturas que a  definem. Na visão de Baumbach, quando esse tecido fino da vida cotidiana é rasgado por turbulências emocionais, essas estruturas são mostradas de maneira ainda mais conspícua. O teatro é uma dessas estruturas; família é outra; e a lei acaba sendo outra dessas estruturas, e uma crítica, que – por todos os seus inconvenientes, absurdos, distorções e pressões – oferece uma centelha e uma forma crucial para revelações e reconhecimentos emocionais que mudam a vida.

É por isso que, quando as paixões reprimidas do casal emergem em uma cena de confronto pessoal não estruturado e não mediado, o que é revelado é um horror, que, em sua monstruosidade, mostra, de uma vez por todas, exatamente por que o casamento terminou. Nicole fala o que pensa e transmite suas experiências e sentimentos. As réplicas de Charlie são cruéis, odiosas, egocêntricas e abusivas. Os dois avançam com raiva, mas Nicole começa com uma queixa básica – que Charlie reprimiu sua individualidade – e sua arrogante rejeição de sua alegação apenas demonstra sua validade. Se a cena aterradora tem uma conclusão pacífica, é uma que ganha dramaticamente: define o arco do filme, apresentando a confirmação da perspectiva de Nicole – reforço, existem os dois lados. Os elementos caoticamente voadores da explosão restabelecerão em ordem na estrutura legal – sem mencionar a artística.

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Assista de mente aberta. É um filme que pode exigir a busca da visão de outras pessoas para entender ambos os lados. Não é um filme fácil, ou sequer tenta ser. E que pode ser dolorosamente real para muitos.

“Marriage Story” está disponível agora na Netflix.

Vale o play.

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