Chega de Saudade!, uma peça que você precisa ver

Criada pela Aquela Cia., o espetáculo refaz a criação da Bossa Nova através da cultura negra.

E se a Bossa Nova fosse um movimento criado por artistas negros? De certo modo, foi. Johnny Alf, um dos pianistas mais geniais do Brasil, tocava em bares soturnos do Rio de Janeiro enquanto Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto eram sua plateia e absorviam as suas inovações. O espetáculo “Chega de saudade!”, em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo, discute como os artistas pretos que também fundaram a Bossa Nova tiveram o seu reconhecimento apagado. 

Com direção de Marco André Nunes e texto de Pedro Kosovski, o grupo de teatro Aquela Cia, reinventa personalidades como Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Carlos Lyra e  o João Gilberto, a partir de um olhar da cultura preta. 

O elenco é todo negro. Isso faz uma diferença imensa já na primeira cena, “Sorriso”. Em uma espécie de acareação, o elenco ressignifica o apartamento de Nara Leão (feita pela artista trans, Blackyva) como o lugar onde a Bossa Nova nasceu. 

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É um impacto imenso perceber que a cultura negra, suas referências e inspirações, foram transportadas pela elite carioca e traduzidas em uma música leve, de pouco confronto. Se ao longo da história do país essa incorporação é vista com normalidade, Aquela Cia. deixa claro que suas raízes foram emprestadas ao movimento bossa-novista sem que os próprios negros pudessem liderá-lo. 

O choque é maior quando Nara se une a Zé Keti e grava a música Opinião. Um marco. Na peça, a cena onde Nara interpreta a canção é fortíssima justamente porque dá a dimensão dessa ocupação engasgada de uma arista branca como uma voz das mazelas do morro. 

E os atores interpretam com fúria. Blackyva, a partir da canção de Zé Keti, subverte a lógica religiosa e incluí um trecho evangélico no encerramento da música: “é terremoto santo, óleo ungido da vitória”. 

A sacada é genial justamente porque lembra que as igrejas, de certo modo, ocuparam o lugar do estado e são as únicas instituições de acolhimento que estão presentes no morro, ao mesmo tempo que serve de uma possível ironia, já que a única forma dos negros terem suas manifestações religiosas aceitas na cultura branca é atrelando suas crenças ao cristianismo. 

Para dar conta de tanta história em pouco mais de uma hora e meia de espetáculo, a dramaturgia de Pedro Kosovski é concisa: transforma a atriz Priscila Marinho em uma cineasta convidada para fazer um documentário sobre a bossa nova. Surpresa, ela usa a própria experiência para entender mais sobre a Bossa Nova.  

encontro com dramaturgo
o dramaturgo pedro kosovski

A segunda parte é justamente a tentativa do elenco em fazer esse filme. Registros audiovisuais colaboram para situar o público e também ampliar as possibilidades criativas de interpretação e ressignificação, em uma espécie de afrofuturismo musical, a estética cultural que pensa o futuro e as manifestações da sociedade sendo protagonizadas por negros. Obviamente que o afrofuturismo é um movimento com definição muito mais ampla e também mais próxima da ficção científica e tecnológica. Ainda assim, ele serve como referência na composição das cenas. 

Os atores cantam e tocam em cena, o que ajuda a deixar o espetáculo sempre em fogo alto. A dinâmica é viva, enérgica, propositadamente confusa em alguns momentos, como se os pretos não se fizessem entender dentro daquele movimento que, de certa forma, lhes foi tirado. 

Mas, “Chega de Saudade!” não é uma peça panfletária. Em vez do discurso fácil, corrosivo e até mesmo superficial, a direção, o texto e o elenco orbitam em torno dessas problemáticas com elementos sutis. A harmonia narrativa respeita o grau de informação do público. Ou seja, você não precisa ser um grande conhecedor de música pra captar para onde o grupo quer te levar. Eles sabem a história que estão contando, dispensam as armadilhas de discurso. Mesmo em citações diretas, como no momento onde a cineasta interpretada pela atriz Priscila Marinho analisa a música “Samba da Benção”, de Vinicius de Moraes, a crítica é inspirada sem deixar de ser firme. 

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No último ato, “Chega de Saudade!” deixa seus acordes mais fortes: é um espetáculo que inverte a paz da música ícone para se transformar em uma canção que realmente diz “chega”, basta; não dá pra ter saudade de um tempo onde a música e a arte funcionavam em espaços limitados, ignorando tipos como Johnny Alf e Alaíde Costa. Nós precisamos conhecer a história ouvindo todos os sons. 

Como o mar de Copacabana, a cultura do Brasil tem águas demais para ser vista de um único barquinho. 

Chega de Saudade!
Com Aquela Cia. de Teatro. De 19/3 a 24/4. No Teatro Anchieta

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