Crítica da Criatividade Pura: escassez de atenção

Estamos vivendo uma grave crise da criatividade – uma crise com enormes implicações na forma como vivemos.

Sua atenção não entrou em colapso, ela foi roubada.

Durante o episódio “Inovar é uma coisa natural, há bilhões de anos”, do Podcast CrieAtive+, falei com meus amigos Felipe Zamana e Mirian Rodrigues sobre uma série de ideias que fertilizam um novo conceito que chamamos de “empreendedorismo orgânico”.

Dentre todas as bolas levantadas e cortadas, uma me chamou muito a ATENÇÃO.

A despeito de todas as iniciativas para fomentar e gerir processos de criatividade e inovação, ainda esbarramos na dificuldade de fazer as pessoas se engajarem de forma profunda e consistente.

Zamama comentou o quanto a expressão “criatividade” está imensamente desgastada por um uso que não tira dela o melhor azeite que poderia oferecer.

Parece que o ato criativo ainda é “fazedor de coisas”, não inspirado e nem mesmo inspirador.

O excesso de pressão para dar resultados limitou a criatividade a uma operária capaz apenas de seguir regras, perdendo a sua essência mais fantástica que é exatamente a de quebrar qualquer tipo de regra, a fim de dar à luz à inovação que tanto queremos.

Queremos?

Nessa primeira parte, vamos falar sobre o assalto ao banco central das nossas emoções.

Nossa atenção foi tomada à força e parece que gostamos disso.

A criatividade nossa de cada dia está comprometida porque não conseguimos suportar mais do que 5 segundos de tédio, e isso está nos deixando, confortavelmente, para trás, em um jogo que exige ideias originais para termos alguma chance de sobrevivência.

Parece que as pessoas não conseguem ir além da “página 3” em praticamente nada.

O que está acontecendo?

Estamos vivendo uma grave crise de atenção – uma crise com enormes implicações na forma como vivemos. Aprendi que existem fatores que comprovadamente reduzem a capacidade das pessoas de prestar atenção e que muitos destes fatores têm aumentado nas últimas décadas – por vezes dramaticamente.

Uma perfeita tempestade de degradação cognitiva.

Os fatores que prejudicam a nossa atenção não são todos imediatamente óbvios.

No início, a gente se concentra na tecnologia, mas na verdade as causas variam muito – desde os alimentos que comemos ao ar que respiramos, desde as horas que trabalhamos até às horas em que já não dormimos bem.

Incluem muitas coisas que consideramos naturais – desde a forma como privamos as nossas crianças de brincar, até à forma como as nossas escolas retiram o significado da aprendizagem, baseando tudo em testes.

Assim como o movimento feminista reivindicou o direito das mulheres sobre seus próprios corpos (uma luta que continua até hoje), eu defendo um movimento pela Atenção, para recuperarmos o controle sobre nossas mentes. A ação urgente é essencial, semelhante ao enfrentamento das crises climáticas ou de obesidade – quanto mais demoramos, mais difícil se torna.

À medida que nossa atenção se degrada, torna-se cada vez mais desafiador reunir a energia pessoal e política necessárias para enfrentar as forças que roubam nosso foco.

O primeiro passo exige uma mudança em nossa consciência. Em vez de nos culparmos ou fazer exigências mínimas a nossos empregadores e empresas de tecnologia, devemos reconhecer que nossas mentes nos pertencem.

Juntos, podemos recuperá-las das forças que buscam roubá-las.

No volume um do Livro do Desassossego, Fernando Pessoa diz que para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. “Por isso realizar é não realizar”, comenta o poeta. Para ele “a vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos”.

A criatividade é um ato cultural, que bebe das nossas histórias pessoais e dos sonhos que buscamos realizar. A qualidade dessa combinação determina os resultados que alcançamos.

Por isso, a qualidade da nossa atenção interfere diretamente na qualidade de nossas escolhas.

O uso da criatividade como recurso meramente executivo tem minado o seu poder de transformar o mundo através de ideias que sempre podem ser recombinadas, decompostas em pedaços menores e reorganizadas para fazer novo sentido e gerar novas perspectivas.

E tudo isso só funciona com combustível emocional. Raro nos dias de hoje!

Enquanto estivermos vivendo à base de microdoses de dopamina, a cada 5 segundos, oferecidas pelo feed de notícias de nossas redes sociais, estaremos condenados a um futuro incerto, no qual, talvez, nem as inteligências artificiais mais sofisticadas poderão nos ajudar.

É preciso exercitar o tédio, que já foi provado ser um santo remédio para curar a maldita escassez de atenção. Mas, esse será o tema para a segunda parte dessa trilogia.

Agora, vamos ver o que a Mirian e o Felipe têm a dizer sobre essas ideias:

Mirian Rodrigues:

[  Mas fique tranquilo, nossa atenção não é tão limitada quanto a do peixinho dourado.

A ideia de que a atenção humana é mais limitada do que a de um peixinho dourado, frequentemente citada em reportagens desde 2015, merece uma análise mais detalhada e científica. Esta comparação, que sugeria uma capacidade de atenção humana inferior a 8 segundos (menos do que os 9 segundos atribuídos aos peixes dourados), originou-se de interpretações equivocadas de um estudo não confirmado e tampouco foi realizado ou apoiado pela Microsoft. Este equívoco salienta a importância de uma abordagem rigorosa e fundamentada na avaliação metodológica das pesquisas.

Em um contexto mais amplo, nossa era é marcada por uma busca incessante por gratificação imediata, impulsionada pelo consumo constante de conteúdos em redes sociais e outras plataformas digitais. Esta dinâmica tem levado a uma sensação de insatisfação persistente. De acordo com a Doutora Anna Lembke, psiquiatra e professora em Stanford, nos tornamos a “Nação dopamina“, um termo que ela usa para descrever nossa dependência de estímulos prazerosos e instantâneos em seu livro de 2021. Além disso, a tendência de buscar medicamentos para aumentar a satisfação pessoal, potencializando nossas capacidades cognitivas e evitando o “FOMO”, foi analisado por Lembke em outra de suas obras, que sugere uma transição para uma “Nação Tarja Preta“, publicado em 2023. Recomendo a leitura de ambas as obras.

Nesse cenário, ficamos com a reflexão: é imperativo voltar nossa atenção para o que é genuíno e significativo. Em um mundo repleto de distrações digitais, o ciclo atual nos convida a redescobrir a arte de estar presente, eliminando a multitarefa e o domínio das telas em nossas vidas. Este chamado enfatiza a importância de ouvir, observar e se conectar profundamente com os outros e o ambiente ao nosso redor.

Paralelamente, minha pesquisa recente sobre saúde e prevenção, realizada sob a certificação “3 Ondas” do instituto de letramento de futuros Aerolito.io, reforça a ideia de que a saúde é uma faceta multidimensional. Este estudo destaca a necessidade de gerenciar todos os aspectos da saúde, com um foco particular na plenitude mental. Entre as abordagens promissoras encontradas, destaca-se o neurohacking, uma estratégia baseada nas mais recentes descobertas da neurociência.

Para fortalecer a atenção genuína, estratégias como o estímulo do Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro (BDNF), crucial para a neuroplasticidade, são essenciais. Práticas como meditação diária aumentam a matéria cinzenta em áreas do cérebro responsáveis pela atenção e memória. Além disso, um sono de qualidade é fundamental para a consolidação de memórias e a criatividade. Desafios mentais que formam novas conexões neurais também são cruciais para manter o cérebro ágil. Essas ações, embora simples em teoria, exigem planejamento e implementação estratégicos, impulsionando mudanças de hábitos no “agora” para construirmos o futuro onde controlamos nossos impulsos, e não seremos controlados por eles….

Por fim, como bem pontuado por Thomas Frey, “O jeito que você imagina o futuro muda suas ações no tempo presente. Portanto, não é apenas o presente que constrói o futuro. O futuro também constrói o presente”. Esta reflexão sublinha a importância de uma abordagem consciente e intencional em relação à nossa saúde mental e bem-estar no contexto atual. ]

– Excelente perspectiva, Mirian: “mudanças de hábitos no ‘agora’ para construirmos o futuro onde controlamos nossos impulsos”. Acredito que esse será o grande desafio da humanidade daqui para frente, como tem sido há tempos, desde a revolução cognitiva. A diferença, hoje, são os infinitos estímulos digitais que nos sequestram a atenção o tempo todo. Proteger esse bem, ou seja, a atenção e para onde ela pode nos levar, deverá ser a grande meta humana nesse “novo futuro”, se quisermos ter uma consistente saúde mental.

E o Felipe, o que ele tem para nós?

Felipe Zamana:

[ A atual geração da Economia Criativa está pautada no fazer, ou seja, os makers. A democratização da personalização, estimulada pela Internet, foi também, de certa forma, a democratização da criatividade. Agora todos nós temos meios para fazer e criar. Por exemplo, podemos identificar a crescente popularização da Cultura Maker e DIY (Do It Yourself), além do acesso rápido e gratuito a tutoriais, materiais e conteúdos educativos em diferentes plataformas digitais.

Mudar o foco do produto para o processo criativo foi o grande salto dessa geração.

Entretanto, o que agora estamos persuadidos a consumir, de forma mais evidente, são os meios para criar. Porém, como Kirby Ferguson, criador do Everything is a Remix, uma vez disse, “queremos o mesmo, só que diferente”. Na era da Economia Criativa, criar tornou-se um estilo de vida, embalado como uma experiência. Só que, infelizmente, tanta criação nos deixou cegos para o que realmente importa. O “fazer por fazer” e o “fazer mais e mais rápido” nos mantém anestesiados e desatentos, ao mesmo tempo que nos dá a ilusão de estarmos a ser produtivos. Sem perceber, continuamos a criar mais do mesmo, só que diferente. Não importa quantos vídeos de gatinho você já tenha visto ou criado – sempre há espaço para mais um.

Ao mesmo tempo, vemos uma preocupação crescente com o impacto das nossas atitudes e criações. Só criar não basta – precisamos também avaliar se o que criamos realmente tem valor ou acrescenta algo. Atualmente, essa avaliação foi esquecida e desvalorizada, tendo sua responsabilidade transferida para algoritmos, que agora nos dizem o que deve ou não ser criado.

Sem dúvida, esse processo de mudança de foco no produto para o processo foi importante para conquistarmos mais autonomia e liberdade para criar. Entretanto, nesse novo momento em que a responsabilidade social é imprescindível para o desenvolvimento da criatividade, a necessidade de avaliar nossas criações volta a ser de suma importância, não podendo continuar exclusivamente nas mãos dos algoritmos.

Só que essa avaliação não deve ocorrer apenas no resultado, como é o costume. Deve acontecer durante todo o processo, desde a identificação e análise do problema, propostas de possíveis soluções e, finalmente, aceitar ou rejeitar essas soluções. Em outras palavras, a criatividade é a consequência da avaliação contínua do ato criador pelo indivíduo e, posteriormente, pelo grupo. Desse ponto em diante, precisamos praticar o que chamei de experimentação deliberada: nossa intenção deve estar orientada para a experimentação, autoavaliação, aprendizado e nossa atenção orientada aos processos e resultados.

Além disso, com o surgimento de questões ambientais, sociais e humanitárias complexas, a mente de um único indivíduo não parece ser o suficiente para atender a essas novas demandas tecnológicas. Assim, com a geração maker, temos a criatividade como um aspecto de constructo social. Ela está integrada ao pensamento da cultura e sociedade, colaborando ativamente para a sua construção através de ecossistemas criativos.

Construímos sempre utilizando o que já está disponível. Criamos novas tecnologias utilizando as tecnologias que já existem e, ao fazer esse movimento, temos um crescimento exponencial. O mesmo acontece com o desenvolvimento de ideias e conceitos, já que nascem do conhecimento disponível. Com a criatividade não é diferente; estamos construindo sobre os ombros de gigantes.

Vivemos a contradição de querer manter aquilo que já conhecemos do jeito que está enquanto, na mesma medida, ansiamos por novidades e mudanças. Mas esse conflito entre ser conservador e disruptivo é o que faz as engrenagens da cultura e sociedade girarem. Por mais que gostemos do que a criatividade simboliza hoje, é necessário aceitar o fato de que, como qualquer outra coisa no planeta, ela também está em constante transformação.

Nas palavras do ator Joseph Gordon-Levitt, “Há um sentimento mais poderoso do que chamar atenção: prestar atenção.” Portanto, nossa atenção deve se voltar ao impacto das nossas ações e criações, de forma a estimular atitudes que promovam o desenvolvimento social e cultural. A criatividade não é só responsável pela autorrealização pessoal, mas também é fruto das interações sociais.

A criatividade somente será plena quando formos capazes de cultivar ecossistemas de mentes questionadoras, onde a troca de ideias e a construção de conhecimento constituem o seu bem mais valioso. ]

– Felipe, gostei muito da forma como você desenhou suas ideias, deixando abertura para polinização, onde é possível deixar algum pólen e, é claro, levar um pouco mais adiante, sem deixar de ganhar néctar como recompensa.

Férteis ideias para uma profunda e necessária reflexão: “O ‘fazer por fazer’ e o ‘fazer mais e mais rápido’ nos mantém anestesiados e desatentos, ao mesmo tempo que nos dá a ilusão de estarmos a ser produtivos. Sem perceber, continuamos a criar mais do mesmo, só que diferente.

Estamos “fazendo” e “postando” em busca de atenção, nos esquecendo de “prestar atenção” na realidade, de onde é possível aprender alguma coisa.

Todo esse barulho está nos domesticando para continuar apertando parafusos, enchendo as redes sociais com o máximo de conteúdo que formos capazes de criar, com uma necessidade de atenção que nem sabemos se realmente precisamos.

Como bem disse o ator Joseph Gordon-Levitt sobre ter foco, em sua TED Talk, “eu sinto que faço parte de algo maior do que eu, assim nos protegemos de qualquer outra coisa que possa roubar nossa atenção, e assim podemos simplesmente estar presentes”.

A atenção é a coisa mais valiosa do universo.

Tudo o que existe está aí para contemplação e para surpreender o viajante, não importa quem, desde que seja senciente.

Você é?

Não importa se está no cosmos, no multiverso ou no universo quântico. A capacidade de atenção que temos está dentro de nós por um único motivo: perceber e compreender a vida através de sua beleza.

Sem doses diárias de Thaumazein (do grego θαυμάζειν), ou seja, “a admiração, a perplexidade e o assombro que o mundo causa”, é impossível liberar a nossa atenção para voar por conta própria. Experimente!

E só poderemos fazer isso se nos unirmos em colaboração.

Sim, a beleza da humanidade sempre esteve e sempre estará na sua inclinação para trabalhar em sistemas de cooperação. Viver em rede está em nossa essência mais primitiva. Escrito nas camadas mais profundas de nosso DNA.

Utópico?

Talvez, mas enquanto nossa atenção não estiver recebendo o melhor cuidado, podemos acabar perdendo esse poder ou trocando-o por uma forma de ficarmos confortavelmente entorpecidos.

A sua criatividade e o seu futuro dependem de uma visão que nos reconecta ao resto da humanidade, organicamente.

Preste atenção nisso. Combinado?

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