“Sorry we missed you” ou a uberização do mundo

Quando a Uber chegou ao Brasil, com seus preços atrativos, seus carros novinhos com ar condicionado e motoristas educados, imediatamente caiu nas nossas graças.

Parecia incrível e bom para todos.

O mesmo aconteceu com todos os serviços informais que foram aparecendo ao longo dos últimos anos para facilitar a rotina. Corridas baratas e toda e qualquer entrega ao nosso alcance, sem que a gente precise sequer levantar do sofá.

Como conseguimos viver sem tudo isso por tanto tempo? 

Mas a verdade é que aquilo que, para uns é conforto, para outros é um bico, exaustão e abandono social. 

Uma das imagens contemporâneas mais tristes que eu já vi é a do entregador de delivery no meio de uma enchente tentando levar a encomenda intacta. O post foi compartilhado milhares de vezes por todos, com a promessa virtual de que iríamos repensar isso. Mas alguns dias depois ninguém lembrava mais e continuamos a fazer os nossos pedidos do conforto da nossa casa, através do celular.

Em seguida, veio a história do cadeirante: que trabalhou por oito horas seguidas sem comer, só para dar conta de todas as entregas.

Mais uma vez nos comovemos para, em seguida, esquecer.

Esses dias fiz um pedido pelo aplicativo. O entregador se confundiu e a entrega demorou mais tempo que o previsto. No final, ele me pediu uma gorjeta maior porque não tinha valido a pena aquele trabalho. Me comovi e disse que daria se ele subisse para buscar (com um bebê recém-nascido, tá difícil descer). 

Não liberaram sua subida e não consegui dar a gorjeta. Mesmo assim ele foi gentil, e me disse por mensagem: “Tudo bem, fica na paz”.

Mas eu não fiquei. 

Essa semana estreou o filme “Sorry we missed you”, com o título em português “Você não estava aqui”, do diretor britânico Ken Loach que fala justamente sobre essa nova perfeição do sistema que leva a exploração do trabalhador.

Em mais de cinquenta anos de cinema, Ken nunca escondeu sua posição política e faz dos seus filmes verdadeiros manifestos a favor da classe trabalhadora. Enquanto o anterior: “Eu, Daniel Blake” é sobre burocracia e desemprego, o recente, alerta sobre a precarização, a ilusão, e o abandono social dos empregos informais, com jornadas de mais de quatorze horas de trabalho, sem nenhum benefício que compense essa exaustão. 

“Você não trabalha para nós, você trabalha conosco” é a frase que marca o ponto de partida dessa história sobre uma família, em que o pai e a mãe vivem na informalidade desses novos “promissores” empregos para dar conta das dívidas, e conseguir sustento para os filhos.  

Se você já viu algum filme desse diretor deve saber o que esperar do longa, que arrebatou festivais como Cannes e San Sebastian. Se ainda não viu, sugiro que veja. Ken Loach com seus 84 anos, é uma das vozes mais poderosas quando se trata de mostrar os bastidores do capitalismo, que segundo ele: “é uma máquina de moer seres humanos“. 

Saí do cinema me perguntando: 

O que eu posso fazer?

Não usar mais esses aplicativos é uma saída?

O filme provoca e alerta, mas não aponta um caminho.

Não tem um dia que eu não lembre do entregador que me pediu a gorjeta extra e eu não consegui dar. “Fica na paz”, ele me disse tão conformado. 

Como ficar na paz sabendo dos bastidores desses trabalhos quase escravos?

Como ficar na paz sabendo que eu, e todos os meus amigos, que temos discursos tão humanistas, compactuamos com isso?

Não tem como ficar na paz, amigos.

Que a gente consiga ao menos, enxergar o ser humano por trás dessas entregas e, no mínimo, ser gentil com cada uma dessas pessoas.

Ken Loach, obrigada por esse filme capaz de tirar a nossa paz tão ilusória quanto esses empregos contemporâneos informais. 

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