Vinho, urso polar e um suicídio na Riviera Francesa: meu maior desencontro com Zlatan Ibrahimovic

Era junho de 2016 e lá estava eu na Riviera Francesa para minha nona cobertura do Cannes Lions, principal festival de criatividade e publicidade do mundo. Como nos anos anteriores, a ideia era aproveitar os dois dias anteriores ao início do evento que, apesar do glamour do nome e lugar, costuma ser uma maratona para quem não é publicitário vai a trabalho.

Naquele ano eu estava com a equipe do Reclame, do Multishow, e resolvemos dar um pulo em Ventimiglia, primeira cidade do norte italiano que faz fronteira com o fim do sul francês. Uma hora e meia de trem, passando por cidades como Nice e Mônaco, e chegamos lá depois do almoço daquela quinta-feira, dia 16, depois de uma parada em Eze.

Era ano de época de Eurocopa, ali mesmo na França, então sentamos num boteco de praça para assistir Inglaterra 2×1 País de Gales. Vinho italiano vai, vinho italiano vem e eu começo a fuçar na tabela de jogos. “Pqp! Amanhã tem Suécia x Itália em Toulouse, 15h00! É a despedida do Ibra da seleção! Será que tem ingresso?”. Quem me conhece sabe o quanto eu sou fã de futebol e, em especial, do atacante sueco Zlatan Ibrahimovic. Já tive dois curiosos desencontros com ele, mas nada se compara com o que aconteceria nas próximas horas.

Mando mensagem para o Gringol, amigo brasileiro que mora em Londres e acompanha vários jogos internacionais, que me indica um site confiável para comprar ingressos. “Distância Cannes-Toulouse”, busco no Google: Sete horas de trem. Faço cálculos e vejo que o primeiro trem sai de Cannes 7h10 da manhã. Chegaria em Toulouse pouco depois das 14h, com uma parada de minutos em Marselha. Apertado! Na conversa com os amigos do compra ou não compra, a chance única de um Ibra x Itália na França, defendida pelas taças de vinho falou mais alto. Comprei. “Alguém vai comigo?”. Óbvio que não.

A noite foi caindo, tudo na pequena Ventimiglia foi fechando e fomos de volta à estação de trem. A ideia era acordar cedo em Cannes, embarcar às 7h10 rumo a Marselha, depois Toulouse e finalmente realizar o sonho. No folheto que tínhamos, o último trem de volta à França saía 22h30. Chegamos 22h10 na estação e… tudo fechado. No papo mezzo inglês, mezzo italiano com o segurança, fomos avisados que agora o último trem sai 22h, mas esqueceram de recolher os folhetos antigos. Trem, agora, só 5h da manhã. Começou o pesadelo.

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A simpática comuna de Ventimiglia, com 25 mil habitantes


A jornada

Com a turma intercalando “vai dar tudo certo”, “desiste” e “eu avisei que ia dar merda”, saímos atrás de um hotel para passar a noite. De repente, parecia que Ventimiglia tinha virado o maior destino turístico do mundo, com todos os hotéis e pensões lotadas. Fomos achar a única opção era mais de meia-noite. Encosto na cama com a roupa do corpo, alarme no talo para 4h10 e boa noite.

Acordei, deixei a galera roncando e saí pelas ruas ainda escuras de volta para Cannes. Cheguei, corri para o hotel e peguei o básico: camisa do Corinthians, bermuda, passaporte, carteira e celular: lá vamos nós. Embarquei pontualmente às 7h10 para o trecho de 2 horas e meia até Marselha. Nada de internet, Candy Crush comendo solto e intercalando com a belíssima vista da costa francesa na janela. Chega em Marselha, sai da estação para espiar a cidade, espera o próximo trem por 20 minutos e embarco para Toulouse.

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A belíssima Notre Dame de la Garde, vista da saída da estação de trem de Marselha

Sento no lugar marcado e vamos para as próximas quatro horas de viagem. Na minha frente senta Antoine, um cara boa pinta com seus 40 anos e um case de violão. Papeando, ele me conta que trabalhava com marketing e largou tudo para ir ser músico no Canadá. Voltou para o casamento de um amigo, onde ia tocar com a família toda na noite daquele sábado. Com internet, me ajuda a descobrir que o Ibis onde eu devia buscar o ingresso era quase na frente da estação. Agora era chegar e correr para o estádio. Ou deveria ser.


Tudo tremendo

Entre cochilos desconfortáveis, acordei pela última vez quando faltava meia hora para finalmente chegarmos. Antoine dormia abraçado no case do violão enquanto passávamos por grandes pastos de um lado e plantações do outro. De repente, tudo começa a tremer e o trem desacelera até parar. O francês acorda e pergunta o que aconteceu, e digo que não faço ideia. Segundos depois, o autofalante começa explicar o que houve. Ele faz uma cara de quem deixou o Whatsapp aberto em casa e me assusta, enquanto olho para o relógio.

“Você entendeu?”, me pergunta. “Meu francês é péssimo, então devo ter entendido errado. Mas ele falou que encontrou uma pessoa???”. Era por aí. Há 25 minutos da estação final, no meio do nada com coisa nenhuma, naquele exato minuto e local, um camponês tolosano achou que a vida já não lhe fazia mais sentido e, ao ver o trem se aproximando, pulou nos trilhos. As portas se abriram e eu perguntei para que lado ficava a estrada, já pensando em pular, correr pelos campos, achar uma boa alma que estacionaria seu Peugeot 106 azul bebê 1995 a diesel e, emocionado com a história, ultrapassaria os 80 km/h rumo ao Ibis mais próximo. Nada feito.

“Por lei, ninguém entra e ninguém sai até a polícia fazer a perícia”, me conta o colega francês. No desespero, ando de um lado para o outro no trem enquanto chegam os guardas, que também caminham por dentro e por fora dos vagões. O tempo passa. Nos meus cálculos, já era hora do intervalo e tinha perdido todo o primeiro tempo. “Quer saber quanto está o jogo?”, pergunta Antoine. Arrisquei saber, mesmo com a chance de ficar puto por ter perdido um possível golaço do Ibra. “0x0”, ele me mostra no celular o placar virtual. Quem sabe ainda dá…


CORRE!

Depois de 1h30 parados, o trem voltou a andar. Com o mapa decorado de como chegar no hotel e pegar o ingresso, fiquei os 20 minutos colado na porta, herança dos anos de baldeação na Sé. Antes do trem parar, aquele abraço no Antoine e lá vou eu correndo desesperado pela plataforma. Por sorte (engraçado falar isso aqui), o Ibis era logo atravessando a esquina. Cheguei.

Toca procurar o gerente do hotel, que teoricamente tinha o envelope com o meu ingresso pago online. Bem naquela hora o caboclo tinha saído para fumar, e toca eu caçá-lo na rua. Na TV, o jogo passando: 0x0, 28 minutos do segundo tempo. Pego o ingresso (ele existe!) e peço a senha do wi-fi para pedir o Uber, que demora intermináveis 4 minutos até ele chegar. “TOCA PRO ESTÁDIO si vous plait, mon consacré”. E lá vamos nós.

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Ingresso do jogo na mão, rumo ao estádio de Toulouse

Com a cidade cheia de bloqueios e o tiozinho empolgado com a minha aventura, baixou o Jason Statham em “Carga Explosiva”, com direito a open bar de conversão proibida. Depois de zerar a cartilha da barbeiragem, finalmente vemos o estádio ao fundo. Com mais um bloqueio, ele para no meio de uma avenida, debaixo de uma passarela e grita: “Desce aqui! Vai por cima! Corre!”. E lá vou eu num misto de Usain Bolt com Jacaré do É o Tchan, a toda velocidade.

Pelos meus cálculos, 40 minutos do segundo tempo. O estádio há pouco mais de 2. Já dava para ouvir bem a torcida quando… gol. De quem? Dele? Da Itália? Foi bonito? Por que eu perdi essa caceta por UM MINUTO? Sem tempo de perguntar, continuo correndo e passo dos primeiros bloqueios. O fluxo já é contrário e com suecos saindo, o que me faz descobrir que era gol da Itália. Agora, é só passar desse último bloqueio e entrar. Ou deveria.

Com ingresso na mão para agilizar, sou parado pelo guardinha. “Onde você vai?”. Controlando o instinto de Seu Saraiva, disse apenas que ia entrar no estádio. “Não vai. O jogo já acabou”, ele responde me barrando. Disse que não tinha acabado, que a torcida ainda estava gritando, eu tinha ingresso e que ia entrar nem que fosse só para ver o estádio por dentro. Nada feito.

Preparado para aproveitar os 1,90m e 100 quilos que Deus me deu para entrar carregando ele junto, já com aquele peito de pomba inflado, fui desencorajado por uma mão desconhecida no ombro. O dono era uma versão croissant do The Rock com Capitão Nascimento, vestindo farda camuflada e uma metralhadora na transversal. A cara de poucos amigos dele, somada à minha cara de árabe e os então recentes acontecimentos no Charlie Hebdo, unidos ao sobrenome “Mohamad Rajab” de mamãe presente passaporte do meu bolso, me fizeram desistir de qualquer argumentação. Era hora de engolir seco e aceitar que deu tudo errado. E antes fosse só isso.

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Meu único registro na porta do estádio, por onde eu deveria ter conseguido passar :(


A volta

Eram 18h30, mais de 14 horas do início da jornada e chegava a hora mais dolorosa: voltar. No meio da manada viking, lá fui eu rumo ao metrô e do metrô para a estação de trem para começar as mais de 7h de retorno até Cannes. Dia seguinte, 10h30 da manhã, já tinha marcada minha primeira entrevista, em vídeo, com um gringo dono de uma agência que tinha levado um urso polar para a Riviera Francesa – mecanizado, mas extremamente realista, numa campanha contra o aquecimento global. E tem gente que acha que eu não trabalho em Cannes. :)

Chego no guichê da estação de Toulouse para comprar as passagens de volta. Deu 80 euros, só tinha 50 em espécie, vou passar o cartão de crédito e… negado. Débito? Negado. Outro cartão… negado. Em 30 minutos saía o último trem para Marselha, e toca eu correr atrás de um caixa eletrônico. Tento tirar 100 e não vai. 50? Não vai. 30? Não vai. Outro cartão e a mesma coisa. Não sai 100, não sai 50, sai 30! Como eu tenho sorte!

Corro para o mesmo guichê, furo a fila e compro as duas passagens Toulouse-Marselha e Marselha-Cannes, com o primeiro saindo em 10 minutos. Chego no primeiro destino pouco depois das 22h e, em teoria, 22h30 saía meu trem para Cannes, onde eu finalmente chegaria de volta lá pelas duas da manhã. Vou para a plataforma indicada e… nada de trem. Olho no painel e começa a tremedeira: cancelado. No guichê, a senhorinha tem a pachorra de me informar que “infelizmente tivemos um acidente mais cedo, com um dos nossos trens indo para Toulouse, e precisamos cancelar alguns trechos. Mas fique tranquilo que amanhã, 7h15, tem um novo trem e você pode usar a mesma passagem!”.

Era meia noite quando eu, a camisa do Corinthians, a bermuda, o passaporte, a carteira com cartões que não funcionavam, 2 euros e um celular sem internet com 8% de bateria fomos colocados para fora da estação, que iria fechar. Ao lado, um Ibis. Na recepção, o atendente português me avisa que como teria jogo da França na cidade no dia seguinte, todos os quartos estavam lotados. O único disponível custaria 160 euros, que na cotação da época era algo como “muito mais do que eu teria como pagar”.

Com a temperatura despencando, saí já preparado para testar a nada glamurosa vida de mendigo francês por uma noite, quando vi uma portinhola escrita “Hotel du France”. Abri e o “estabelecimento”, continuação da padoca da esquina, tinha um balcão de madeira carcomida e uma cartolina com quadrados desenhados a caneta Bic, além de um simpático rapaz dormindo sentado. Ele obviamente não falava inglês, mas entendeu minha intenção e disse que havia um único quarto, por 30 euros. Duvidei do valor, escrevi num papel para confirmar e ele acenou positivo. Lá vou eu, teimoso, na saga dos cartões. O primeiro no crédito e nada, nem no débito. Coloco a senha do segundo, rola aquele momento de suspense e finalmente ouço o maravilhoso barulhinho da bobina imprimindo, naquele momento mais prazeroso que um “bonne nuit” de Carla Bruni suspirado no ouvido.

Com medo de não acordar, pedi para ser chamado 6h30. Vi ele anotar bonitinho no papel e subi um lance de escadas para o meu “quarto”, que descobri ao chegar ser uma espécie de quebra-galho do lugar, com três camas alinhadas em frente ao estoque de papel higiênico, o aspirador de pó, pacotes de sulfite, caixa de TV e outros elementos espalhados. No canto, próximo à janela com madeira esfarelando, uma pia minimalista, praticamente um mictório com torneira. Para evitar maiores traumas, preferi evitar descobrir onde era o banheiro.

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Uma composição do ambiente que me hospedou confortavelmente na minha pernoite em Marselha. Nota: MUITO melhor que o banco da praça :)

Com 2% de bateria no celular, nem modo avião era certeza de despertador. Para garantir, dormi com a TV ligada (tinha TV!) num canal de notícias, daqueles que tem relógio na tela o tempo todo. Entre um cochilo e outro eu batia o olho no marcador: 2h30, 4h10… PQP, 7h10!!! Toca por a roupa, celular, carteira, passaporte, 2 euros e sair voando pela escada. “Nossa! Já passou das 7h! Quer ajuda com a mala?”, perguntou o desgraçado que, se entendesse português, tinha corrido atrás de mim para tirar satisfação. Atravessei a rua sem olhar e, 2 minutos antes de mais um trauma, estava eu respirando de novo já dentro do trem. Claro que só porque cheguei no horário, ele atrasou 20 minutos para sair. Mas naquela altura, nada me abalava mais.

Chego em Cannes às 10h20 do sábado, no puro chorume da derrota. Em 10 minutos, tinha que estar com cara de gente, minimamente trajado e com câmera rodando para a tal entrevista com o dono da agência gringa e o urso polar, na frente do Palais que recebe o Festival de Cannes, provavelmente lotado por ser o primeiro dia de evento. Torcendo para a equipe – que não tinha notícias minhas há pelo menos 20 horas e podia já ter declarado meu falecimento – também estar pronta, cheguei no nosso hotel meia bomba e encontrei o pessoal saindo, já achando que eu não tinha sobrevivido. Num banho digno de pitstop da Ferrari, daqueles que deixam pneu solto, recuperei um pouco da dignidade, coloquei a primeira camiseta que apareceu no topo da mala e lá vamos nós.

Chegamos a tempo, batemos um rápido papo prévio e na hora da entrevista, interferência no microfone. Respiro fundo, a técnica consegue um cabo curto demais e o operador de áudio fica quase pendurado no meu joelho, enquanto eu bato aquele papo gostoso sobre mudanças climáticas debaixo de um sol de 35 graus, observado de perto por um animal selvagem. Finalizo, agradeço, me despeço e volto para o hotel para duas horas de descanso até o almoço, tentando pregar o olho e não pensar nos mil e duzentos reais gastos em passagem de ida, volta, hotel e ingresso para o jogo que eu não vi, e que pareciam muito menos antes da conversão do euro.

Depois disso, foi fazer o básico e sobreviver até a volta ao Brasil, uma semana depois. Ah, mas sem antes mais um irônico e cômico fato que serviu como cereja do bolo fecal: a entrevista com o urso polar nunca foi ao ar. ?

*imagem de destaque: caricatura de Zlatan desenhada pelo sensacional Eco Moliterno e enviada de presente após ouvir essa história, sobreposta à minha coleção de camisas do jogador

https://www.instagram.com/p/BjCUZAhlmcV/
Único registro da incrível e fundamental entrevista com o famoso urso polar
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