A relevância da perspectiva

Por Daniel Glik

Eu costumo dizer que tudo (e realmente acredito nisso) é uma questão de perspectiva. Bom ou ruim, certo ou errado, melhor ou pior, bonito ou feio. Certas coisas, se levarmos em conta um comportamento minimamente ético,  são certas ou erradas e ponto final.

Mesmo que possam não ser assim consideradas na perspectiva dos atores. Mas não vou me estender nesse mérito. Subjetivamente, nosso olhar sobre uma situação, um contexto, uma ação, pode variar de acordo com nossos valores, com nosso background, com nossa religião, com nosso status social.

Se você é uma pessoa realmente pobre do sertão nordestino que agora recebe um auxílio do governo, pode achar que o país nunca esteve tão bem. Se você é um cidadão de classe média que tem uma pequena empresa na área da metalurgia, talvez ache que o país nunca esteve tão mal. Ambos estão corretos, de acordo com sua perspectiva.

Nesse mundo interligado, online, as diferentes perspectivas entram em confronto com mais frequência. Afinal, em outros tempos, não faríamos ideia do que pensa uma pessoa que vive do outro lado do país. Talvez nem mesmo do outro bairro. Nosso círculo de relações sociais, antes restrito por barreiras físicas e geográficas, foi substituído por essa rede infinita, heterogênea, com perspectivas completamente diferentes. Numa sociedade que ainda está aprendendo, vagarosamente, a lidar com a diversidade, o embate é inevitável.

Nessa guerra de opiniões, um dos graves riscos que corremos mora em confiarmos mais na informação que nos ajude a sustentar a nossa própria perspectiva. Muitas vezes ignoramos a origem, as múltiplas interpretações possíveis, até mesmo a veracidade da informação, partindo do pressuposto que, se ela está alinhada com o que EU penso, provavelmente é verdade. E que ninguém se engane, quem produz a informação pode ter exatamente este interesse. Cada pedaço de informação é temperado ao sabor do nosso paladar, para que consumamos e recomendemos aquela desinformação gostosa para nossos amigos de paladar semelhante.

Quando somos fisgados por esse tipo de isca, muitas vezes passamos a nos enxergar detentores de alguma verdade inexorável. Logo, o próximo que tenha um ponto de vista diferente está errado. Temos aquela matéria, aquele número, aquele vídeo para provar que estamos certos.

Sejam tais fontes verdade ou não, a interpretação que se faz dela pode ser múltipla, pode ser desconstruída, pode ser descontextualizada, de acordo com cada perspectiva. E assim está criada uma discussão sem fim baseada na defesa de um lado e não na lógica do debate argumentativo. Quem nunca?

Uma tendência de perspectiva que tenho observado com bastante frequência é o que vou chamar de ‘pensamento trágico desinformado’: “Nunca fomos tão violentos”, “Essa empresa está acabando com o Brasil”, “Estamos a beira do fim do mundo”, e por assim vai.

São todos pontos de vista válidos, claro. Mas ao meu ver, uma perspectiva bastante desinformada sobre o ser humano, a sociedade e sua história. Acredito que essa sensação possa ser causada justamente por essa hiperconectividade dos tempos modernos, que nos fornece uma quantidade enorme de informações sobre o que acontece ao redor do mundo, numa velocidade quase instantânea. Notícia ruim corre depressa, já dizia o ditado. A sensação é que há muito mais acontecimentos negativos agora que antes. Quando talvez, na realidade, só não tomávamos tanto conhecimento.

Vejamos por outra perspectiva. Há poucos séculos a humanidade era formada por bárbaros. As sociedades viviam de invasões, domínio, pilhagem e escravidão. A Revolução Francesa, um dos momentos chave da instauração da democracia no mundo ocidental, tem pouco mais de dois séculos, assim como a revolução industrial, o ponto de partida do desenvolvimento tecnológico e produtivo moderno. A energia elétrica só foi inventada há 137 anos. Existem vovós japonesas com essa mesma idade. Por outro lado, o ser humano (homo sapiens) existe na Terra há cerca de 200 mil anos.

Durante noventa e quatro por cento desse tempo, vivemos como animais, já que estima-se que o ser humano “inteligente” vive há cerca de 12 mil anos. Podemos nos considerar realmente civilizados (se é que já o somos) há 0,1% desse tempo (obrigado, Renato). Essa história de não nos agredirmos violentamente o tempo inteiro é coisa bem recente. Assim, eu tenho dificuldades em aceitar que estamos regredindo. Na verdade, o fato de nos preocuparmos tanto com as tragédias, com as pessoas, com a melhora do planeta, mostra que estamos, ainda que mais lentamente do que deveríamos, constantemente avançando.

É claro que desastres naturais, ataques terroristas, guerras, tudo isso nos atinge em cheio, no ponto mais fraco da nossa humanidade. E dói. Ignorar esses fatos nos livraria de muito incômodo. Mas isso não quer dizer que eles deixariam de existir. Pode parecer uma tentativa de relativizar os recentes ocorridos, numa espécie de “sempre foi assim”. Mas não, pelo contrário.

O que quero dizer é que era pior. Muito pior. Há 127 anos, era aceitável que se acorrentasse pessoas e as obrigassem a trabalhar forçadamente, sob o açoite diário, por toda sua vida. Há exatos 100 anos, mais de 800 milhões de pessoas estiveram envolvidas na primeira grande guerra mundial, a metade da população do planeta àquela época. E o resultado, estima-se, foram 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos.

Há 70 anos, encerrava-se a segunda grande guerra mundial, com uma estimativa que chega há 85 milhões de mortos, um continente inteiramente devastado e duas bombas nucleares lançadas. No Brasil, um país considerado de vanguarda no sufrágio universal, as mulheres só puderam votar a partir de 1932. Na Suíça e em Portugal, as mulheres votam desde a década de 70, apenas. Nos EUA, “the land of the free and the home of the brave”, negros eram legalmente segregados até 1964. Quarenta e quatro anos anos depois: Obama.

A violência entre os seres humanos é uma constante na história do mundo. E ao meu ver, sempre será. Esperamos que em escala cada vez menor. Mas a nossa perspectiva sobre isso vai se alterando constantemente, de acordo com múltiplas variáveis. Um exemplo, para ficar bem claro: uma criança nascida no meio da guerra da Síria, só conhece a guerra da Síria. Essa é sua única realidade.

Essa mesma criança, levada a Paris como refugiada, não vai nem perceber a violência dos atentados do dia 13 de novembro. É exatamente esse tipo de variação de referencial que nos faz ignorar as 140 mortes violentas diárias no Brasil e nos consternar profundamente com a tragédia francesa onde foram mortas 129 pessoas. É compreensível. Essa é nossa natureza solidária, que, infelizmente, é constantemente explorada pela mídia, criando uma distorção absurda, na qual, de repente nos vemos dentro de uma bolsa de valores de vidas humanas. Quem vale mais?

A realidade é que essa disputa do que vale mais ou menos, de nada serve. Em primeiro lugar, porque os valores são subjetivos demais para que se chegue a uma equalização 100% equilibrada. Em segundo lugar, porque brigar no Facebook não vai fazer o ISIS mudar de planos. Muito menos irá remover a lama do leito do Rio Doce. Talvez seja mais importante que nos concentremos nos conceitos, numa visão mais macro do mundo. Principalmente quando pretendemos ficar só campo do debate das ideias e não no trabalho de campo de fato.

É preciso exercitar a empatia para compreender a perspectiva do outro. Mais do que isso, é preciso compreender minimamente o contexto que pode ter levado o outro a possuir aquele ponto de vista. É saudável e estrategicamente mais inteligente. Afinal, não faz muito sentido agredir seu adversário esperando assim fazê-lo mudar para o seu time.

Se você tem certeza que está certo de algo, acredite, o seu par oposto tem exatamente a mesma certeza. Talvez seja mais fácil se encontrar nos pontos convergentes e respeitar as divergências. E caminhar a partir daí. Até porque, um mundo onde todos pensassem igual seria extremamente entediante para pessoas como eu, loucas por um debate.

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