A arte de ser burro

Esse cenário nos coloca contra a parede, principalmente porque nossos piores inimigos sabem tudo sobre nós, e vigiam tudo o que fazemos. Em breve, serão capazes de prever 100% de nossas decisões.

“Invejo a burrice, porque é eterna.”
Nelson Rodrigues

A criatividade é a palavra mais envernizada do momento. Muitos holofotes estão sobre ela, principalmente aqueles que esperam tirar dela algum subsídio. O conceito está sempre em debate, a fim de acharmos uma definição que lhe caia bem. A própria dificuldade de realizar essa tarefa mostra que ou realmente não sabemos ou que preferimos uma descrição que se encaixe em nossos interesses.

Com o fim dos empregos, seremos obrigados a buscar novas funções, cada vez mais ligadas a segmentos que exigem posturas mais criativas. As máquinas estão “roubando” funções repetitivas, que exigem alto grau de concentração, como em fábricas e em setores burocráticos; e não se engane, até na medicina e em setores jurídicos já existem iniciativas para automação. Assusta muito esse processo, claro. Lembro dos tempos quando éramos obrigados a saber usar computadores. Novidade e artigo de luxo, custavam os olhos da cara. Cursos pipocavam por toda a cidade, de todos os preços. Currículos sem o famoso “conhecimento em Word e Excel” eram desprezados, sem misericórdia. Quem tem mais de 30 lembra bem disso.

Era a pré-história da revolução digital.

Máquinas burras fazendo amor com seres humanos. Dessa relação nasceria uma geração de pessoas que não conseguiriam perceber o mundo sem a ajuda das máquinas. A disruptura que hoje destrói nossas rotinas, colocando absolutamente todos em polvorosa, assusta pois achávamos que as máquinas seriam eternamente dóceis e obedientes. Isso, infelizmente, não é verdade. No passado, aprendemos compulsoriamente a usar máquinas, hoje elas nos libertaram de muitas atividades repetitivas para, enfim, prestarem atenção na gente, aprendendo com nossos passos, a fim de ajudar a guiá-los, “para o nosso bem”.

O Big Brother de George Orwell não está apenas em TV’s dentro de nossas casas, mas na palma das mãos de quase todos os seres humanos que habitam esse pequeno planetinha azul. As máquinas estão cada vez mais “inteligentes”. E isso só é possível porque somos a sua fonte. Mas, até quando?

Com a eliminação maciça de empregos por causa da automação, um número imenso de pessoas está ficando pelo caminho. Essas mesmas pessoas que foram obrigadas a conseguir um diploma em cursos de informática, estão hoje perdidas em busca de respostas sobre o futuro, com poucas ou nenhuma pista a seguir. Nesse cenário está sendo vendida a mensagem salvadora de que a única saída será investir na criatividade. “Todos somos criativos, e precisamos desenvolver essa competência” é o discurso mais repetido nos quatro cantos da Internet. Como houve nos anos 80 e 90, com a febre dos cursos de informática, teremos, creio eu, a febre dos cursos de criatividade. Com direito até a diploma para colocar na parede.

A questão é a seguinte: se há um sério e endêmico déficit criativo nas escolas, nas empresas, no mercado e na vida em geral, quem vai nos ensinar a sermos mais criativos? Quem vai nos salvar da inevitável ditadura das máquinas? As próprias máquinas?

Uma coisa é verdade, a tecnologia sempre trabalhou para tornar as nossas vidas melhores. Leia-se “melhor” como mais confortável, tranquila e rápida no que diz respeito à fruição dos prazeres da própria vida. Criamos para nos preocupar menos. Afinal, a preocupação é um importante ingrediente em histórias cujo personagem principal é a criatividade. Aí que está o problema. A tecnologia que criou o nosso “berço esplêndido”, e matou a nossa criatividade, hoje exige que sejamos cada vez mais criativos.

Quando Nelson Rodrigues fala da eternidade da burrice, tento acreditar que o dramaturgo nos lembra da nossa infinita condição de prisioneiros da ignorância. Ela não tem limites. Criamos máquinas porque não somos capazes de lidar com o volume de informações que geramos. Somos megalomaníacos por natureza. A arte de ser burro deve ser uma compreensão de nossa incapacidade de abraçar o mundo e deixar sim, que as máquinas tomem conta de nossas vidas, fazendo todo o trabalho “braçal”, como os gregos defendiam. Somos ignorantes porque não conseguimos saber e nem entender, absolutamente, tudo, sozinhos. Por isso começamos a escrever em tabuletas de pedra e madeira, e hoje temos tabletes conectados à Internet. E, mesmo assim, continuamos limitados, dentro de nossas características biofísicas.

Nos resta apenas a nossa imaginação e o seu poder atômico. Isso as máquinas talvez nunca tenham, mesmo operando na velocidade da luz. Mas, não há certezas sobre nada quando a imaginação humana entra em campo. As máquinas hoje ainda são estúpidas, mesmo nos surpreendendo todos os dias, com simpáticas IA’s e seus nomes sugestivos. Elas aprendem diariamente com nossos erros e acertos, e prometem forçar a barra.

Imagino um mar de gente desempregada em busca de criatividade para não morrerem de fome, que vai encher as portas dos cursos com filas intermináveis; inclusive cursos online, com kits, etc., etc., etc.

A única lição que consigo tirar disso tudo é a cena das máquinas nos observando para aprenderem. Se a gente se interessar por assuntos diversos, prestando atenção em como as pessoas funcionam e não apenas em como as máquinas funcionam, poderemos ter uma esperança. Enfim, ninguém melhor do que um ser humano para aprender com outro ser humano. As máquinas ainda só fazem trabalhos repetitivos porque são como animais selvagens. Agem por “instintos” escritos em linhas de códigos pré-definidos. Os criativos de carne e osso do século 21 serão pessoas, de todas as idades, que se interessam pelo homo sapiens na sua plenitude; na sua história e em como chegamos até aqui, sobre as ficções e mitos que definem a nossa cultura.

À medida que as ficções humanas são traduzidas em códigos genéticos e eletrônicos, diz Yuval Noah Harari, a realidade intersubjetiva vai engolir a realidade objetiva e a biologia vai se fundir com a história. “Portanto, no século XXI a ficção se tornará a força mais poderosa da Terra, superando os asteroides e a seleção natural”, diz. Para ele, se quisermos entender nosso futuro, decodificar genomas e triturar números, dificilmente será suficiente. “Temos de decifrar também as ficções que dão significado ao mundo”, defende.

Acreditamos em muitas coisas. E isso é o que nos move adiante. Além de pirâmides, porta-aviões, smartphones, bombas atômicas e naves espaciais, precisamos buscar entender o nosso porquê, mesmo que soe meio infantil ou piegas dizer isso. Por que criamos tantas coisas, inclusive máquinas para nos ajudar a fazer mais perguntas e correr o risco de sermos, ironicamente, superados por elas?

Esse cenário nos coloca contra a parede, principalmente porque nossos piores inimigos já sabem quase tudo sobre nós, e vigiam tudo o que fazemos. Em breve, serão capazes de prever 100% de nossas decisões, até por que boa parte delas é sugerida. Vamos precisar superar isso, com criatividade. Mas, onde ela está? Poderemos comprá-la na quitanda da esquina? Escolas e empresas poderão nos ajudar? Os cursos de criatividade poderão nos livrar de um apocalipse digital? Seria apenas mais um desafio a ser superado ou o triste fim da raça humana? Só o tempo dirá. E ele está cada vez mais escasso.

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