O bom e velho novo normal

Não sou nem de longe a maior fã do ser humano, mas reverencio nossa capacidade de sobrevivência

O ser humano é uma espécie admiravelmente adaptável.

Está em casa assistindo televisão, finalzinho de domingo, e de repente – não mais que de repente, diria o poeta – um Tsunami invade a cidade onde mora, destrói sua casa, sua filha, sua compota de morango que ele guardou para comer na manhã seguinte, seu novo conjunto de lençóis que ainda estava na embalagem, sua reserva de palavras não-ditas e de perspectivas.

Ele sobrevive à catástrofe, é levado a um abrigo onde depende de doações internacionais para garantir o mínimo de valor nutricional ao seu corpo, água potável e saneamento básico. Tem acesso a poucas notícias sobre o resgate dos corpos nos escombros, procura palavras para explicar ao filho menor que sua irmã está desaparecida, aprende a rezar. Os dias passam, os meses, os anos, recomeça a vida com uma banca de jornal, conhece Malee, juntos têm mais dois filhos e aquele primeiro se forma em engenharia química. Celebram o Natal com um falso pinheiro decorado, tradição que ele mantém dos avós americanos.

Outro ainda é criança quando levado para um campo de concentração na Polônia, assiste à família ser arrastada para a câmara de gás, observa a fumaça, é obrigado a usar como penico e defecar no mesmo prato onde come sem garfo, faca ou colher, trabalha forçado, recolhe tijolos, tem sarna, pesa 28 kg e um dia é libertado. É visto, muitos anos depois, de terno e gravata tomando um cappuccino em Londres. Dá um beijo na neta e se apressa. Adquiriu com os britânicos o hábito de ser pontual.

Agora, depois de tanta história para boi dormir, aproveito que eles pegaram no sono no meio do texto e enfim ficamos sós: não sou nem de longe a maior fã do ser humano, sabemos, mas reverencio nossa capacidade de sobrevivência que vai muito além do instinto, é muito mais que puramente animal. Continuar indo-para-frente exige driblar marcas, saudades, flechas, histórias, feridas, lembranças. Chegar até aqui é mole. Qualquer barata chega. Quero ver chegar e dizer: trouxe minha mente, essa puta arma branca que mata mais que qualquer vulcão, vírus ou acidente aéreo. Isso é coisa de ser humano. Coisa de gente. Nós somos muito acanhados para nos aplaudir, mas pode deixar que eu levanto e faço as honras.

Depois de tudo, sobreviveremos. Como, quando, quantos, não sabemos. Mas contaremos histórias uns aos outros, como já faziam as tribos indígenas ao redor da fogueira, sobre nossas perdas irreparáveis, embarcações naufragadas e dragões vencidos. Faremos homenagens aos que viverão agora apenas em memória. Lembraremos da expressão “novo normal”, as previsões, os discursos dos grandes entendedores e por uns minutos também morreremos – mas de rir. Assim que olharmos para os lados e verificarmos que, sim, está tudo normal. Sempre esteve. O normal é transitório, passageiro, fugaz, mas sempre atende pelo mesmo nome. Vai ficar tudo normal.

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