O brasileiro é criativo?

Desculpe, mas vou colocar na entrada desse texto o significado de uma palavra.

Astuto [ adjetivo ]

1. que sabe agir de maneira a angariar para si vantagens e a não se deixar enganar; esperto, matreiro, astucioso. 2. hábil para fazer maldades, esp. enganando outrem; astucioso, velhaco, finório.

Sísifo era filho do rei Éolo, da Tessália, e Enarete. Ele foi o fundador e primeiro rei de Éfira, depois chamada Corinto, onde governou por diversos anos. Ele era considerado o mais astuto de todos os mortais. O cara passou a perna nos deuses e enganou a morte não uma, mas duas vezes. Um ato épico para um ser humano. Pelo menos, na mitologia grega.

Já me perguntaram muitas vezes sobre o processo criativo brasileiro, e eu sempre disse a mesma coisa. O tupiniquim tem problemas com a sua própria criatividade. Na verdade, por motivo de força maior, ele se tornou um eterno virão. Sim, aquele que se vira.

É um tipo de criatividade? Talvez.

Não deixa de ser um esforço mental lutar para garantir a própria sobrevivência. Muitos poderiam chamar isso de conformismo, mas o nativo da Terra de Santa Cruz tem emergências muito mais urgentes que a vã filosofia poderia explicar. De mente e barriga vazias fica difícil construir repertório. Sentindo um variado cardápio de dores fica difícil expressar a alma em seus mais diversos afetos. Sem um horizonte à frente torna-se quase impossível sentir aquele friozinho de quem sabe que pode acreditar em seus melhores esforços.

Isso pode chocar a maioria. Não nego, mas preciso ser fiel à minha maneira de lidar com a realidade. Sinceridade é uma bebida eternamente amarga. Se tiver sorte, só o tempo para lhe conferir algum tipo de doçura.

O Brasil tem uma história muito peculiar.

Somos a soma literal de tantas possibilidades. Somos a fúria e o som de uma miscigenação forjada no horror. Uma eterna colônia, explorada desde o dia em que foi “descoberta” por europeus, sendo estuprada incessantemente por um infindável secto de amantes de sua beleza sui generis. Tudo o que havia nessa terra instigava o desejo nos olhos de quem a contemplava. Todos a queriam para si, enquanto fonte de algum tipo de prazer e realização pessoal. No entanto, a maioria, depois de se satisfazer, voltava para casa com o motivo da visita guardado em baús de madeira de lei, deixando para trás a sua vítima prostrada, sem forças para reagir e muitos motivos para lamentar.

A gambiarra nos salvou da extinção!

Aprendemos a sobreviver nesse Brasil, desde sempre, fugindo de quem só nos via como fonte de recursos. Sobrevivemos, roubando de quem nos roubava em santos ocos. Sonegando de quem nos sonegava. Driblando o azar e fazendo samba com as migalhas que nos sobrava. Criamos “jeitos” de seguir em frente. Criamos formas de lidar com a sufocante “mão invisível” que nos cobra o pão nosso de cada dia. Demos à luz um tipo muito específico de ser criativo. O brasileiro é especialista na arte de sobreviver. Estamos sempre a um passo de chegar “lá”, mas esse sonho nunca se realiza. Estamos sempre atrasados. Nossas obras, mesmo quando as terminamos, estão, de muitas formas, amarradas com arame para não cair.

Estamos sempre com fome, e sempre esbarramos nas vestes da morte, que está o tempo todo fungando no cangote da maioria massiva desse povo sofrido.

O grande rei Sísifo, mesmo astuto e cheio de truques, acabou condenado a um tipo muito específico de castigo, até porque surpreendeu a todos no Olimpo, inclusive Zeus. Pela eternidade o malandro deveria empurrar uma imensa pedra até o cume de uma montanha, de onde ela caia e deveria ser trazida de novo. Alguma semelhança com a realidade? Todos nós temos as nossas próprias pedras, que levamos ao cume de algum lugar, cumprindo uma eterna obrigação, mesmo sem saber porque. E ela sempre despenca de lá, e temos que recomeçar a labuta.

A criatividade nacional tem a sua gênese nesse caldeirão, mesclado de ideias temperadas com atos diários de sobrevivência. Ainda somos o lugar para onde se vem tirar alguma coisa. O visitante ainda nos vê como mão de obra barata, e nossas mulheres são objetos para seus desejos mais abusivos. Todos querem algo daqui, inclusive quem investe dinheiro em busca de lucro fácil. Até o nativo, quando se realiza financeiramente, a primeira coisa que faz é comprar uma casa em Miami, Lisboa ou Ibiza. O resto sobe a montanha, com fome, usando a constante tragédia como inspiração para um processo criativo que emagrece enquanto deixa de ser original.

Depois de 500 anos, ainda não conseguimos criar uma identidade. Somos quem mesmo?

Nossas obras de arte mais famosas falam de trabalhadores explorados, vidas secas, genocídio e escravidão. Ainda precisamos lutar contra os princípios mais básicos do racismo. Ainda lidamos com a versão mais ferrenha do chamado “complexo de vira-lata”, alcunha de Nelson Rodrigues. Ainda achamos o importado digno de maiores glórias e louvores do que o fruto da terra.

O brasileiro é criativo? Claro! Mas, ainda usamos nossa arte mais poderosa para apenas sobreviver. Muitas vezes, ainda aclamamos a ideia do malandro astuto, com traquejo e cheio de manhas. Aprendemos a não nos importar com atos ilícitos, desde que haja algum charme nisso. O estômago vazio é compensado com uma boa história. E quando fica insuportável, apela-se para a violência, que acaba virando roteiro de cinema ou um bom tema para a roda de cerveja no boteco da esquina.

Há muita criatividade nesse país. Algo do tipo grandioso, premiada e reconhecida no mundo todo. Mas, a maioria ainda luta para entender o que é ser brasileiro, em um país que insiste em não lhe dar um mínimo de recursos e possibilidades. Não é privilégio desse ou daquele governo, pois a nossa cultura ainda está rabiscada em velhos valores, que beneficia um tipo muito específico de cidadão e oprime toda uma massa de gente que não se parece com ele.

A versão assustadora da vida parece ser atualizada no Brasil antes do resto do mundo. Claro que é recalque o que eu acabei de dizer. Afinal, existem lugares bem piores. Mas, eu não moro lá, eu moro aqui, e gostaria que pudesse ser diferente. Existe o famoso mito de que o brasileiro é criativo, mas ele infelizmente não consegue atingir seu melhor resultado por causa de um conceito de meritocracia, que amputa seus sonhos e expectativas bem antes de ele entender o que aconteceu. No berço sente-se fome. Na escola sente-se fome. Nas ruas sente-se fome. Corpos subnutridos criam mentes desprovidas de grandes sonhos, e, por isso, quase nenhuma coragem.

A história nos condenou à astúcia. Lutamos contra a morte e sobrevivemos como é possível, dando um jeitinho aqui e ali, nem sempre honestamente, mas saímos vivos no final do túnel. Daí, para não ser engolido pelo caos, a maioria usa o que tem e como pode para dar o próximo passo.

Hoje em dia, nem mesmo os diplomas podem nos salvar do triturador social. Alguns raros pouquíssimos dão a sorte de se desvencilhar do arrastão de incertezas. E desses, mais raros são aqueles que voltam para oferecer alguma ajuda. Egoísmo? Medo? Não sei dizer. A única verdade é que as pessoas estão aí de olhos rasos e almas vazias, à espera de um milagre. O mundo lhes obriga a serem mais criativas, mas lhes falta o ponto de partida, o motor e as asas para alçar o voo. Como vencer o desafio do vento em circunstâncias tão trágicas?

Machado dizia que “lágrimas não são argumentos”. Chorar faz bem! Sim, eu concordo! Mas, precisamos parar de beijar as mãos do rei. Na verdade devemos parar de chamar as pessoas de “reis de disso” e “rainhas daquilo”. Esse sentimento faz parecer que nunca poderemos superar os seus feitos. Essas pessoas são tão boas quanto podemos ser, desde que as oportunidades sejam equiparadas, é claro. Devemos abraçar o desafio como sendo nosso, como se dependesse só da gente.

Diferente de Sísifo, podemos reorganizar as coisas e dar uma banana para Zeus.

Já somos mestres em reinventar a realidade, e pós-graduados em lidar com crises, mesmo com fome. Sempre há um jeito de transformar carvão em diamantes, água em movimento, palavras em ação e uma pedra no caminho da montanha em um ponto de partida.

Tempo e atitude são ingredientes atômicos.

Só precisamos de bons motivos. E isso não nos falta. Afinal, mesmo tendo sido roubados e violentados durante tanto tempo, ainda nos resta alguma dignidade. Isso já é suficiente para nos oferecer novas oportunidades. Para sermos mais criativos precisamos aprender a nos reinventar. Sem isso, só nos resta a pedra, a montanha e um castigo sem fim.

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